“A postura faz o homem”, de Stephen Jay Gould — tradução

In: Stephen Jay Gould, Ever Since Darwin: Reflections on Natural History. Nova York: W. W. Norton and Company, 2007. pt. 7, cap. 26, pp. 207-13.
ISBN 978-0-393-34041-9 (e-book)

Tradução de Felipe Cotrim

Nenhum evento fez mais para estabelecer a fama e o prestígio do American Museum of Natural History do que as expedições de 1920 no deserto de Gobi. As descobertas, incluindo os primeiros ovos de dinossauros, foram excitantes e abundantes, e o romantismo delas se adequava ao mais heroico molde hollywoodiano. Ainda é difícil encontrar uma história de aventura melhor do que o livro de Roy Chapman Andrew — com o título chauvinista —: The New Conquest of Central Asia [A nova conquista da Ásia Central]. Contudo, as expedições falharam completamente em atingir o propósito declarado: encontrar, na Ásia Central, os ancestrais do homem. E falharam pela mais elementar das razões: evoluímos na África, conforme Charles Darwin havia suposto cinquenta anos antes.

Nossos ancestrais africanos — ou, ao menos, nossos primos mais próximos — foram descobertos em depósitos de caverna durante os anos 1920. Mas esses australopitecíneos falharam em servir às noções preconcebidas do que um “elo perdido” deveria parecer, e muitos cientistas se recusaram em os aceitar como membros bona fide de nossa linhagem. A maioria dos antropólogos haviam imaginado uma transformação razoavelmente harmoniosa do primata para o humano, impulsionado pelo aumento da inteligência. Um elo perdido deveria ser intermediário entre corpo e cérebro — o Brucutu [Alley Oop] ou as velhas, e falsas, representações dos neandertais encurvados. Mas os australopitecíneos se recusaram a se sujeitar. Para ter certeza, os cérebros deles eram maiores do que os de qualquer primata com tamanho corporal comparável, mas não muito maior (ler ensaios 22 e 23). A maior parte de nosso aumento evolutivo no cérebro ocorreu depois de termos atingido o nível do australopitecíneo. Porém, esses australopitecíneos de cérebro pequeno caminhavam tão eretos quanto você ou eu. Como isso seria possível? Caso nossa evolução tenha sido impulsionada por um cérebro em crescimento, como poderia a postura ereta — outra “marca distintiva da hominização”, não só uma característica acidental — se originar primeiro? Em um ensaio de 1963, George Gaylord Simpson se utilizou desse dilema para ilustrar

as eventuais falhas espetaculares em prever descobertas mesmo quando há bases sólidas para essas previsões. Um exemplo é a falha em prever a descoberta de um “elo perdido” na evolução, agora conhecido [o Australopithecus], que era ereto e fabricante de ferramentas, mas tinha uma fisionomia e uma capacidade craniana de um primata.

Devemos atribuir essa “falha espetacular” primeiro ao sutil preconceito que levou a seguinte, e inválida, extrapolação: prevalecemos sobre os outros animais por meio do poder do cérebro — e um pouco mais; portanto, um cérebro em crescimento deve ter impulsionado nossa própria evolução em todos os estágios. A tradição de subordinar a postura ereta a um cérebro em crescimento pode ser traçada ao longo da história da antropologia. Karl Ernst Baer, o maior embriologista do século XIX — e segundo apenas de Darwin no meu panteão pessoal de heróis cientistas — escreveu em 1828: “A postura ereta é consequência apenas do maior desenvolvimento do cérebro; […] todas as diferenças entre os homens e os outros animais dependem da estrutura do cérebro”. Cem anos mais tarde, o antropólogo inglês G. E. Smith escreveu: “Não foi a adoção da postura ereta ou a invenção da linguagem articulada que fez o homem do primata, mas o gradual aperfeiçoamento do cérebro e a construção demorada da estrutura mental, dos quais a postura ereta e a fala são algumas das manifestações acidentais”.

Contra essa ênfase em coro sobre o cérebro, alguns poucos cientistas defenderam a primazia da postura ereta. Sigmund Freud sustentou muito de sua altamente idiossincrática teoria da origem da civilização acerca dessa postura. Iniciando em suas cartas a Wilhelm Fliess nos anos 1890 e culminando no ensaio de 1930, O mal-estar na civilização, Freud argumentou que nossa suposição da postura ereta reorientou nossa sensação primitiva do olfato e da visão. A desvalorização do olfato moveu o objeto de estimulação sexual nos machos do odor do ciclo estral para a contínua visibilidade da genitália feminina. O desejo contínuo dos machos se orientou para a evolução da contínua receptividade nas fêmeas. A maioria dos mamíferos copulam só em torno dos períodos de ovulação; os humanos são sexualmente ativos em todos os períodos — um tema predileto dos escritores da sexualidade. A sexualidade contínua cimentou a família humana e fez a civilização possível; animais com um ciclo forte de copulação não apresentam ímpeto para a estrutura familiar estável. “O processo decisivo da civilização”, conclui Freud, “estaria, portanto, na adoção de uma postura ereta pelo homem”.

Embora as ideias de Freud não ganharam seguidores entre os antropólogos, outra tradição menor emergiu para enfatizar a primazia da postura ereta. (Essa é, aliás, o argumento que tendemos a aceitar hoje na explicação da morfologia dos australopitecíneos e a trajetória da evolução humana.) O cérebro não pode iniciar a crescer no vácuo. Um ímpeto primário deve ser oferecido por uma alteração no modo de vida que estabeleceria um forte e seletivo prêmio sobre a inteligência. A postura ereta libera as mãos da locomoção para a manipulação (literalmente, de manus, isto é, mão). Pela primeira vez, ferramentas e armas podem ser confeccionadas e utilizadas com facilidade. O aumento da inteligência é, em grande parte, uma resposta ao enorme potencial herdado nas mãos livres para a manufatura — outra vez, literalmente. (Desnecessário dizer, nenhum antropólogo foi tão ingênuo em argumentar que o cérebro e a postura são completamente independentes na evolução, que um atingiu o status plenamente humano antes que o outro tenha iniciado a se transformar. Estamos lidando com a interação e o condicionamento mútuo. Contudo, nossa evolução primitiva envolveu uma transformação mais rápida na postura do que no tamanho do cérebro; a liberação completa de nossas mãos para a utilização de ferramentas precedeu a maior parte do crescimento evolutivo de nosso cérebro).

Outra prova de que a sobriedade não acerta, o místico e ocular colega de Baer, Lorenz Oken, acertou sobre o argumento “correto” em 1809, enquanto Baer foi desviado alguns anos mais tarde. “O homem por meio do caminhar ereto obtém seu caráter específico”, escreveu Oken, “as mãos se tornam livres e podem realizar todas as outras funções […]. Com a liberdade do corpo foi também conquistada a liberdade da mente”. Mas o campeão da postura ereta durante o século XIX foi o bulldog alemão de Darwin, Ernst Haeckel. Sem qualquer pedaço de evidência direta, Haeckel reconstruiu nosso ancestral, e até mesmo lhe deu um nome scientifico, Pithecanthropus alalus, o ereto e mudo homem primata de cérebro pequeno. (Pithecanthropus, aliás, é provavelmente o único nome científico dado a um animal antes de que ele fosse descoberto. Quando Eugène Dubois descobriu o Homem de Java nos anos 1890, ele adotou o nome genérico de Haeckel, mas lhe deu a nova designação específica: Pithecanthropus erectus. Agora incluímos casualmente essa criatura em nosso próprio gênero como Homo erectus.)

Mas, por que, apesar da objeção de Oken e Haeckel, a ideia da primazia cerebral se tornou tão consolidada? Uma coisa é certa: não havia nenhuma relação com evidência direta — pois não havia nenhuma para qualquer posição. Com a exceção do Neandertal — uma variante geográfica de nossa própria espécie conforme a maioria dos antropólogos —, nenhum fóssil humano fora descoberto até os últimos anos do século XIX, muito tempo depois que o dogma da primazia cerebral fora estabelecido. Mas debates sustentados em nenhuma evidência estão entre os mais reveladores na história da ciência, pois, na ausência de restrições factuais, as parcialidades culturais que afetam todo o pensamento — as quais os cientistas tentam tão assiduamente negar — são expostas a nu.

De fato, o século XIX produziu um brilhante exposé a partir de uma fonte que, sem dúvida, surpreenderá a maioria dos leitores: Friedrich Engels. (Um pouco de reflexão deverá diminuir a surpresa. Engels tinha um ávido interesse pelas ciências naturais e buscou a sustentação de sua filosofia do materialismo dialético por meio de um fundamento “positivo”. Ele não viveu para completar sua “dialética da natureza”, mas incluiu longos comentários a respeito da ciência em tratados como o Anti-Dühring.) Em 1876, escreveu um ensaio intitulado “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”. Este foi publicado postumamente em 1896 e, infelizmente, não teve impacto visível sobre a ciência ocidental.

Engels considera três características essenciais da evolução humana: a fala, um cérebro grande e a postura ereta. Argumenta que o primeiro passo deve ter sido a descida das árvores, com a subsequente evolução para a postura ereta por meio de nossos ancestrais habitantes do solo. “Esses primatas, quando passaram a se locomover no nível do solo, passaram a abandonar o hábito de se utilizar das mãos e adotaram um modo de andar mais ereto. Esse foi o passo decisivo na transição do primata ao homem”. A postura ereta liberou as mãos para o uso de ferramentas — trabalho [labour], na terminologia de Engels —; aumento da inteligência e fala vieram depois.

Assim, a mão não é o único órgão do trabalho [labour], é também produto do trabalho. Só por meio do trabalho, por meio da adaptação a operações sempre novas […], por meio do sempre renovado emprego desses aperfeiçoamentos herdados em novas e mais e mais complicadas operações, pode a mão humana atingir um nível mais alto de perfeição, o que a permitiu conjurar em vida as pinturas de Rafael Sanzio, as estátuas de Bertel Thorvaldsen e a música de Niccolò Paganini.

Engels apresenta conclusões como se elas seguissem dedutivamente a partir das premissas do materialismo filosófico, mas eu estou seguro que ele as tomou de Haeckel. As duas formulações são quase idênticas, e Engels cita as páginas relevantes da obra de Haeckel para outros fins em um ensaio anterior escrito em 1874. Mas não importa. A importância dos ensaios de Engels não estão nas conclusões substanciais, mas nas corrosivas análises políticas do porquê a ciência ocidental estava tão fixada na asserção a priori da primazia cerebral.

Conforme os humanos aprenderam a dominar o ambiente material, argumenta Engels, outras habilidades foram adicionadas à caça primitiva — agricultura, fiação, cerâmica, navegação, artes e ciências, lei e política, e, por fim, “o reflexo fantástico das coisas humanas na mente humana: a religião”. Conforme se acumulou riqueza, pequenos grupos de homens se apoderaram do poder e forçaram outros a trabalharem para eles. O trabalho [labour], a fonte de toda a riqueza e o ímpeto primário da evolução humana, assumiu o mesmo status rebaixado daqueles que trabalhavam para as classes dominantes. Desde que as classes dominantes governavam por sua vontade — isto é, por sua própria destreza —, as ações do cérebro aparentavam dispor de um poder motriz próprio. A profissão da filosofia não seguiu nenhum ideal imaculado de verdade. Os filósofos dependiam da patronagem do Estado ou da religião. Mesmo se Platão não conspirou conscientemente para reforçar os privilégios das classes dominantes com uma suposta filosofia abstrata, sua posição de classe o encorajou a enfatizar o pensamento como primário, dominante e integralmente mais nobre e importante do que o trabalho supervisionado pelas classes ociosas. Essa tradição idealista dominou a filosofia até os dias de Darwin. A influência dela foi tão sutil e penetrante que mesmos cientistas materialistas, mas apolíticos, como Darwin, caíram sob sua influência. Um preconceito deve ser reconhecido antes que ele possa ser desafiado. A primazia cerebral aparentava ser tão óbvia e natural que foi aceita como dada, em vez de ser reconhecida como um prejuízo social profundamente arraigado relacionado à posição de classe dos pensadores profissionais e seus patrões. Engels escreveu:

Todo o mérito do rápido avanço da civilização foi atribuído à mente, ao desenvolvimento e à atividade do cérebro. Os homens ficaram acostumados a explicar as próprias ações a partir dos próprios pensamentos, em vez das necessidades […]. Depois, emergiu no curso do tempo aquela perspectiva idealista do mundo que, especialmente desde a desagregação do mundo antigo, tem dominado as mentes dos homens. Ela ainda os domina em tal nível que mesmo os cientistas naturais mais materialistas da escola de Darwin ainda são incapazes de formar qualquer ideia clara da origem do homem, pois, sob a influência ideológica do idealismo, eles não reconhecem o papel representado pelo trabalho [labour].

A importância do ensaio de Engels não está no resultado feliz de que o Australopithecus confirmou a teoria específica proposta por ele, via Haeckel, mas na perspicaz análise do papel político da ciência e dos preconceitos sociais que necessariamente afetam todo o pensamento.

De fato, o tema de Engels da separação da cabeça e da mão fez muito para estabelecer e limitar o curso da ciência ao longo da história. A ciência acadêmica, em particular, tem sido constrangida por um ideal de pesquisa “pura”, a qual, tempos atrás, barrou um cientista de experimentação excessiva e teste empírico. A ciência grega antiga trabalhava [laboured] sob a restrição de que os pensadores patrícios não realizavam o trabalho [work] manual dos artesãos plebeus. Os cirurgiões-barbeiros medievais, que tinham que lidar com as vítimas dos campos de batalha, fizeram mais para o avanço da prática da medicina do que os médicos [physicians], os quais raramente examinam os pacientes e que sustentaram o tratamento no conhecimento de Galeno de Pérgamo e outros textos eruditos. Mesmo hoje, pesquisadores “puros” tendem a depreciar a prática, e termos como aggie school [escola de fazenda] e cow college [universidade de vaca] são escutados e confessam nossa crença na superioridade inerente da pesquisa pura pelo que ela é — isto é, preconceito social —; poderíamos então forjar entre os cientistas a união entre a teoria e a prática que um mundo perigosamente em oscilação e à beira do abismo tão desesperadamente precisa.

STEPHEN JAY GOULD nasceu em 1941 em Nova York. Foi professor de Zoologia Alexander Agassiz e de Geologia na Universidade Harvard. Publicou mais de vinte livros, recebeu o National Book, o National Book Critics Circle Awards e o MacArthur Fellows Program. Faleceu em 2002 em Nova York aos sessenta anos de idade.

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