A Paris de Balzac, de Éric Hazan — resenha

Trad. de David Fernbach. Londres: Verso, 2024. 208 pp.
ISBN-13 978-1-83976-725-8 (hardback); 978-1-83976-727-2 (e-book)

Publicação original: Éric Hazan, Balzac, Paris. Paris: La Fabrique, 2018. 216 pp. ISBN 978-2-35872-160-8

Em Balzac’s Paris: The City as Human Comedy, Éric Hazan — escritor, editor e fundador da La Fabrique — combina a história e a obra de Balzac com a história social e urbana de Paris.

Hazan tem conhecimento enciclopédico da vida e da obra de Balzac e da Paris do Império e da Restauração, e Balzac’s Paris não é sua primeira obra acerca da história da capital francesa, já tendo publicado Paris sous tension, em 2011, e Le Tumulte de Paris, em 2021.

Entre as fontes de pesquisa, Hazan fez amplo uso da documentação disponível na Maison de Balzac, da própria Comédia humana e da correspondência de Balzac, além de textos de Charles Baudelaire, Walter Benjamin, Victor Hugo, Théophile Gautier e Stendhal sobre Paris e Balzac.

Ilustrado com gravuras, pinturas, fotografias e mapas, o livro será do interesse dos estudantes e pesquisadores da literatura francesa e da história social e urbana do século XIX, além do leitor culto e de conhecimento geral.

Como o Balzac e A comédia humana, de Paulo Rónai, o livro de Hazan pode ser bom um companion para a obra balzaquiana.

O livro tem oito capítulos.

O primeiro, “Why Paris?”, serve de apresentação da obra. Nele, Hazan argumenta como a vida e a obra de Balzac se confundem com a história de Paris e como a metrópole francesa foi usada pelo escritor oitocentista como um microcosmo do mundo e da humanidade, ao menos durante o século XIX.

Em seu projeto da Comédia humana, Balzac se colocou como um historiador, um cronista da sociedade parisiense. Segundo Hazan, Balzac tinha os atributos mais adequados para tanto: a memória fotográfica e o caráter observador, análogo ao de um flâneur, os quais o permitiu, por meio da literatura, fazer os registros dos tipos sociais que circulavam pelas ruas da capital francesa. Hoje, esses registros podem ser usados por historiadores como fontes de pesquisa.

O segundo capítulo, “A Wanderer”, faz uma biografia de Balzac por meio das casas nas quais ele morou ou se hospedou, da infância à morte. Quando adulto, Balzac se mudou muito por motivos financeiros e para despistar os credores. O capítulo combina a vida e as residências de Balzac com os livros que ele havia escrito em cada casa que morou.

A casa luxuosamente mobiliada na Rue Fortunée seria a décima e última residência de Balzac em Paris. (Casa na Rue Fortunée, 1889, óleo sobre madeira de Victor Dargaud. Paris, Maison de Balzac. Reprodução de Éric Hazan, Balzac’s Paris: The City as Human Comedy. Trad. de David Fernbach. Londres: Verso, 2024.)

Os capítulos 3 e 4, “The Street” e “Quarters”, são os geográficos e urbanísticos.

Em Balzac, as ruas de Paris são como seus personagens, elas vivem e se desenvolvem, têm personalidade, traços físicos e psicológicos. Algumas são descritas conforme sua moral: “Rue Traversière-Saint-Honoré, não é ela uma rua vil?”; “a Rue Fromenteau não é ao mesmo tempo assassina e marginal?”.

A Paris da época de Balzac era muito diferente do imaginário que se tem hoje daquela cidade, a versão reconstruída por Georges-Eugène Haussmann durante o Segundo Império. A Paris de Balzac ainda mantinha muitos dos traços e dos aspectos medievais, entre eles, a lama, muita lama. À época, poucas ruas haviam sido asfaltadas e os sistemas de drenagem eram primitivos. A presença, ou a ausência, de lama nos calçados e na roupa servia para identificar a classe social do personagem: os burgueses e os aristocratas estavam sempre limpos por se deslocarem em carruagens; os pobres não tinham alternativa senão se sujar.

Como nos tempos de Haussmann, a Paris de Balzac também foi um canteiro de obras e passou por muitas remodelações urbanísticas. Todavia, diferente da Paris do Segundo Império, a de Balzac não tinha um projeto urbanístico centralizado, e as picaretas e as marretas derrubavam quarteirões de modo indiscriminado, inclusive edifícios históricos, motivo pelo qual, muito daquela cidade não existe mais, exceto pelas páginas da Comédia.

Do mesmo modo que as ruas, os distritos de Paris também expressavam personalidade própria e serviam como complemento do caráter dos personagens. A mudança de endereço de um personagem simbolizava a mudança de classe e de status social.

Outro aspecto é que os distritos em Balzac não estavam limitados por suas fronteiras geográficas. Uma pessoa poderia ser de Faubourg Saint-Germain, Les Halles ou Palais-Royal sem morar ali porque sua personalidade exalava aquele distrito. Logo, havia uma relação entre personalidade e status inerente aos personagens e os distritos parisienses, inclusive, havia a possibilidade de simulação, fingir ser alguém mesmo morando no Quartier Latin.

Mapa do Quartier Latin da Comédia humana. (Reprodução de Hazan, Balzac’s Paris, op. cit.)

O distrito parisiense de Marais nos tempos de Balzac. (Reprodução de Hazan, Balzac’s Paris, op. cit.)

Os capítulos 5 e 6, “The Press” e “Publishers”, são os editoriais.

Apesar de seus insucessos financeiros no ramo, Balzac conhecia a indústria dos livros e a imprensa francesa de seu tempo como poucos. Ele fundou sua própria editora e seus próprios periódicos, como as La Chronique de Paris e Revue parisienne, todos projetos fracassados que, além de falirem, o condenou pelo resto da vida a fugir dos credores.

Por meio da biografia de Balzac, o capítulo apresenta a história da imprensa e do mercado editorial da primeira metade do século XIX. Durante os últimos anos da Restauração, período em que Balzac havia feito investimentos no ramo, a publicação de livros passava por uma crise, tanto pelo arcaísmo na distribuição quanto no crédito para financiar aquele setor. Havia também a concorrência dos editores franceses com as publicações não autorizadas feitas na Bélgica e contrabandeadas para a França a preços baixíssimos. Logo, os insucessos de Balzac se deveram menos a ele do que ao contexto infeliz no qual ele apostou seu dinheiro.

Em Ilusões perdidas, Balzac apresenta ao leitor o processo editorial de livros e periódicos, as técnicas de impressão e a exibição das obras nas vitrines das livrarias, os contratos entre editores, gráficos e autores, além dos processos judiciais, enfim, toda a economia política do mercado editorial. Mas ele não o fez em tom de homenagem ao ofício, mas como uma vingança, expondo os bastidores e os interesses financeiros das publicações, pouco interessadas pela qualidade literária das obras ou em informar o público. Parte do rancor de Balzac com a imprensa e o mercado editorial se devia aos desentendimentos com sócios, editores e críticos literários.

Hazan não deixa de comentar acerca de um tema já conhecido entre os interessados pela obra balzaquiana: o método de composição e revisão dos romances de Balzac, que preferia fazer as primeiras revisões em provas impressas. Nelas, ele apresentava uma miríade de correções e alterações substanciais ao texto original. Esse método, exigia mais e mais provas impressas, o que encarecia o processo editorial e enlouquecia os editores e os tipógrafos. E mesmo depois do texto final, impresso e publicado. Balzac continuava seu processo de revisão para as novas edições dos romances, o que continua sendo uma dor de cabeça para os editores, mas uma fonte inesgotável de pesquisas e de monografias a respeito da obra de Balzac.

Capa da Revue parisienne, publicada em 25 de setembro de 1840. (Acervo da Maison de Balzac, Paris. Reprodução de Hazan, Balzac’s Paris, op. cit.)

Página das provas do Ilusões perdidas. Nela, pode-se conhecer o pouco eficiente e custoso método balzaquiano de revisão. Era só depois da primeira impressão que ele revisava o texto enviado à gráfica. Longas passagens eram rescritas, completamente modificadas, o que demandava novas impressões, que passavam pelo mesmo método balzaquiano de revisão. Por meio desta prova de Ilusões perdidas se pode imaginar a dificuldade dos tipógrafos em compreender e aplicar as vontades do autor. A eles, nossos mais sinceros agradecimentos e solidariedade. (Acervo da Maison de Balzac, Paris. Reprodução de Hazan, Balzac’s Paris, op. cit.)

O sétimo capítulo, “At the Theater”, examina as diferenças entre o Balzac escritor da Comédia humana, perfeccionista e obsessivo, e o dramaturgo, prático e eficiente. Para Balzac, as adaptações de seus romances para o teatro serviam para ganhar dinheiro rápido por meio dos royalties e o ajudar a financiar a construção de sua catedral literária, a Comédia, uma obra pela qual ele visava a glória e a imortalidade no panteão dos grandes escritores. Por esse motivo, Balzac não se importava com a qualidade e a fidelidade das adaptações de seus romances. Em muitos casos, as peças tinham apenas o mesmo título, enquanto o enredo era quase todo modificado para atender ao estilo vaudeville, apreciado pelo público à época.

O teatro e a ópera são ambientes onipresentes na Comédia humana. São os locais de entretenimento, trabalho, encontros amorosos e conspirações, esquemas, são onde as reputações se constroem, para depois serem destruídas. Assim como Balzac desprezava a imprensa e o jornalismo, ele também o fazia com o teatro e a ópera, considerados como espaços artificiais e superficiais. Ele expõe na Comédia, sobretudo em Ilusões perdidas, como o sucesso de uma peça e de seu elenco é arquitetado pelos críticos pena de aluguel, que manipulam a audiência.

O oitavo e último capítulo, “Friends, Politics, and the Realism of Balzac’s Paris”, procura responder à pergunta sobre como Balzac, sem título de nobreza e riqueza, ascendeu ao beau monde parisiense. Isso se fez por meio de dois caminhos principais. Primeiro, por meio de relacionamentos amorosos com mulheres ricas e aristocráticas, em especial a duquesa d’Abrantès e a marquesa de Castries, as quais abriram algumas portas, e janelas, ao jovem e ambicioso escritor. Segundo, por meio de seu talento, de suas obras, as quais o aproximou de outros escritores importantes da época, como Théophile Gautier, George Sand e Victor Hugo, com os quais desenvolveu forte e duradoura amizade.

Na parte final do capítulo, Hazan se debruça sobre um tema importante da obra balzaquiana, o realismo e sua condição de fonte para pesquisas historiográficas.

Embora muitos de seus romances fossem encenados em Paris, Balzac faz poucos relatos dos distúrbios políticos e populares comuns naquela cidade. Ele faz menções às consequências políticas das insurreições e das revoluções, mas não descreve os eventos em si. Ignora inclusive a epidemia de cólera da primavera de 1832. Outro vazio na obra balzaquiana são as classes trabalhadoras habitantes dos subúrbios da capital francesa. Quando esses aparecem, são coadjuvantes e estereotipados. Em geral, os protagonistas da Comédia humana são burgueses e aristocratas, ou arrivistas sociais que se aproximam e ambicionam se tornar membros dessas duas classes e circulam nos ambientes dominados por elas. Para um autor realista e que é apresentado como um cronista, até mesmo um historiador da sociedade de seu tempo, esses pontos cegos não podem ser ignorados por aqueles que usam a literatura como uma de suas fontes de pesquisa.

A Comédia humana, diz Hazan, não pode ser confundida com uma história de Paris e de seus habitantes, uma vez que não segue as regras científicas da historiografia e da sociologia. Inclusive, em muitos casos a imaginação de Balzac se sobrepõe e contraria os fatos históricos.

A lenda de Balzac como um cronista realista da sociedade parisiense e francesa da Restauração foi, em parte, alimentada por ele mesmo no texto de introdução à Comédia humana e nos prefácios que acompanham os romances, além dos intérpretes marxistas, como Friedrich Engels e György Lukács, que exaltaram o realismo da Comédia. Hazan se opõe a essa interpretação. Ele reconhece a lucidez de Balzac acerca da modernidade, do capitalismo e do dinheiro, mas enfatiza que os romances balzaquianos não são documentos do mundo real, mas uma versão imaginária e poética desse mundo.

A Comédia humana permite ao historiador como que adentrar em espaços e situações que raramente são documentados, encontrar indicações e inspirar insights, mas ela não substitui a matéria-prima de seu ofício, as fontes historiográficas. Pelo menos desde a Escola dos Annales, a concepção de fonte historiográfica se expandiu, não havendo mais fronteiras que as limitem em pesquisas históricas. Hoje, seu leque é amplo, mas não se sobrepõe ao método e ao rigor científico esperado de um historiador. Por isso, a Comédia de Balzac pode inspirar e servir aos historiadores, mas sem renunciar ao ceticismo e à prova perante outros documentos.

Para mais informações a respeito de Éric Hazan, indico o obituário “Éric Hazan, Rebel Publisher”, de Enzo Traverso, publicado em 7 de junho de 2024 na The New Statesman.

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