“Como a radical amante de Friedrich Engels o ajudou a fundar o socialismo”, de Mike Dash — tradução

Smithsonian Magazine, Washington, DC, 1 ago. 2013.
ISSN 0037-7333

Tradução de Felipe Cotrim

Retrato do jovem revolucionário Friedrich Engels aos 21 anos, em 1842, ano no qual se mudou para Manchester e um ano antes de conhecer Mary Burns. (Domínio público.)

Mary Burns mostrou ao filho de um capitalista o sofrimento dos trabalhadores de Manchester.

A vida de Friedrich Engels aparece repleta de contradições. Ele foi um comunista prussiano, um entusiástico caçador de raposas que desprezava a aristocracia rural, e um industrial que teve por maior ambição liderar uma revolução operária. Como um próspero membro da burguesia, Engels, por quase quarenta anos, sustentou financeiramente seu amigo e colaborador, Karl Marx, responsável por livros que mudaram o mundo, como O capital. Porém, ao menos um biógrafo argumentou que, a despeito de serem ávidos o suficiente para pegar o dinheiro de Engels, Marx e sua esposa aristocrata, Jenny Westfalen, nunca o aceitaram socialmente como um igual.

Entre essas peculiaridades espreita outra — um enigma cuja solução oferece uma nova e perspicaz visão acerca da vida e do pensamento do parteiro do marxismo. O mistério é este: por que Engels, enviado em 1842 para trabalhar na cidade industrial inglesa de Manchester, escolheu levar uma vida dupla, mantendo residências oficiais dignas de um gentleman em uma parte da cidade enquanto alugava uma série de quartos secretos em distritos operários? Como esse primogênito privilegiado de boa aparência foi capaz de viajar em segurança entre as favelas mais perniciosas de Manchester, coletando informações sobre as vidas desalentadoras de seus habitantes para sua primeira grande obra, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra? Mais estranho de tudo, por que, quando perguntado anos mais tarde sobre sua refeição predileta, um alemão nativo como Engels respondeu que era o ensopado irlandês?1Confissão de Friedrich Engels, Londres, início abr. 1868 (MECW, Marx and Engels Collected Works. Londres: Lawrence Wishart, 1975-2004, v. 43). (Nota do Tradutor.)

Manchester em 1870, ano em que Engels se mudou da cidade na qual viveu por quase três décadas. Manchester foi a maior cidade industrial na Inglaterra e célebre centro do lucrativo comércio de algodão. (Domínio público.)

A fim de responder essas questões, precisamos enxergar Engels não como ele foi ao final de sua longa vida, o grandioso velho barbudo do socialismo internacional, mas como foi em seu início. O Friedrich Engels dos anos 1840 foi um jovem sociável, poliglota, com gosto pelo álcool e pela animada companhia feminina. “Se tivesse uma renda de 5 mil francos”, confessou uma vez a Marx, “faria nada mais além de trabalhar e me divertir com as mulheres até vir aos pedaços.”2Friedrich Engels a Karl Marx, Paris, 9 mar. 1847 (MECW, v. 38). (N. T.) Foi esse Engels quem desembarcou na Inglaterra em dezembro de 1842 — enviado para auxiliar na administração da fábrica na qual seu próspero pai era sócio —, por uma família desesperada em proteger o jovem radical da polícia prussiana. E foi esse Engels quem — para o substancial alarde de seus conhecidos — se encontrou, se apaixonou, durante a maior parte de duas décadas, e viveu em segredo com uma mulher irlandesa de origem operária chamada Mary Burns.

A influência de Burns sobre Engels — e, logo, sobre o comunismo e a história mundial do século passado — foi por muito tempo subestimada. Burns, na melhor das hipóteses, aparece de modo passageiro em livros dedicados a Engels, e quase nenhuma vez em obras gerais a respeito do socialismo. E, uma vez que ela era analfabeta, ou próximo disso — para não dizer irlandesa, operária e mulher —, também legou só algumas poucas marcas nos registros contemporâneos. Exceto alguns esforços genuínos de uns poucos historiadores de Manchester, quase nada se sabe ao certo acerca de quem foi Mary Burns, como viveu ou o que pensava. Porém, ao ler as entrelinhas dos escritos de Engels, é possível compreender que ela teve influência considerável em muitas das grandes obras de seu amante.

Lizzy, irmã mais nova de Mary Burns (c. 1865). Lizzy viveu com Engels depois da morte da irmã e se casou com ele um dia antes de morrer. Não se conhece nenhuma imagem de Mary. (Domínio público.)

Iniciaremos esta tentativa de recuperação da memória esboçando o palco principal da história: Manchester. Deve ser dito que Manchester foi uma escolha ruim de exílio para um homem jovem cujas convicções de esquerda haviam preocupado tanto a família. Essa cidade foi o maior e mais terrível de todos os produtos da Revolução Industrial na Grã-Bretanha: uma experiência em larga escala de capitalismo desenfreado na década que testemunhou uma grande maré de liberalismo econômico. Governo e negócios estavam comprometidos em nome do livre-comércio e do laissez-faire, com toda a concomitante lucratividade e maus-tratos dos operários. Era comum que a mão de obra fabril trabalhasse por quatorze horas diárias, seis dias na semana, e, enquanto muitos destes recebiam de bom grado a ideia de um emprego fixo, os operários não qualificados raramente desfrutavam de segurança no emprego.

As condições de vida nos distritos mais pobres eram abomináveis. Chaminés engasgavam o céu; a população da cidade cresceu mais de sete vezes em algumas poucas décadas. Em razão da altíssima mortalidade infantil, a expectativa de vida daqueles nascidos em Manchester caiu para meros 28 anos, metade destes sendo habitantes das imediações rurais. E a cidade ainda apresentava as cicatrizes do famigerado Massacre de Peterloo — no qual unidades da cavalaria atacaram manifestantes desarmados que reivindicavam o direito ao voto — e os operários mal haviam começado a se recuperar da mais recente e malsucedida greve geral.

Engels foi enviado a Manchester para assumir um cargo administrativo em uma fábrica da Ermen and Engels, produtora de tecidos de algodão. O trabalho era tedioso e clerical, e Engels logo tomou conta de que era menos do que bem-vindo na empresa. O sócio, Peter Ermen, via o jovem como um espião enviado pelo pai — que também se chamava Friedrich Engels —, e deixou claro que não toleraria interferência na administração da fábrica. Todavia, Engels dedicou os melhores anos de sua vida naquilo que, de modo repulsivo, denominava de “o negócio desagradável” [“the bitch business”]. Contudo, revirando uma série deslumbrante de correspondência durante a maior parte dos vinte anos nos quais trabalhou na Ermen and Engels, sugere que aquele serviço foi prestado não como obediência aos desejos do pai, mas como uma necessidade urgente de ganhar a vida. Como sócio da fábrica, Engels eventualmente recebia 7,5% dos ganhos por ação dos lucros crescentes da Ermen and Engels, ganhando 263 libras em 1855 e 1.080 em 1859 — o último consiste em uma soma equivalente a 168 mil dólares em valores atuais.

Peter Ermen, o sócio da família de Engels em Manchester, era um capataz que não tolerava a independência de seus gerentes. (Domínio público.)

O que fez Engels diferente dos industriais com quem se misturava foi o modo como gastava sua riqueza — e os conteúdos da mesquinha caixa de dinheiro de Peter Ermen, a qual era regularmente furtada. Engels devotava a maior parte de seu dinheiro e tempo livre a atividades radicais. O jovem alemão lutou brevemente nas Revoluções de 1848-9, e, durante décadas, se dedicou a um intenso programa de leitura, escrita e pesquisa, interrompido no princípio de 1857, mas que, eventualmente, renderam uma dúzia de grandes obras. Engels também ofereceu apoio financeiro a inúmeros revolucionários empobrecidos — o mais importante destes foi Karl Marx, com quem se encontrou a caminho de Manchester em 1842. Mesmo antes de se tornar relativamente próspero, Engels enviava a Marx por volta de cinquenta libras por ano — valor equivalente a 7,5 mil dólares em valores atuais, e aproximadamente um terço da ajuda de custo anual que recebia dos pais.

Poucos dos contemporâneos de Engels tinham conhecimento de sua vida secreta; e poucos sabiam de Mary Burns. Como consequência, quase tudo que conhecemos da personalidade de Burns vem da correspondência de Engels que sobreviveu ao tempo e de um punhado de pistas exumadas dos arquivos locais.

Não se sabe, com certeza, onde o casal se encontrou pela primeira vez. A partir do que sabemos da vida da classe operária daquele período, parece provável que Mary tenha começado a trabalhar aos nove anos, e que seu primeiro serviço tenha sido como scavenger [funcionário responsável pela coleta do material descartado das máquinas de tecelagem], uma entre a miríade de crianças ágeis que eram pagas alguns poucos centavos ao dia para manter os restos dispersos de felpa e algodão fora das peças das máquinas de uma fábrica. O notável crítico Edmund Wilson levou essa especulação adiante, escrevendo que, por volta de 1843, Mary encontrou serviço na fábrica de Ermen. Mas Wilson não ofereceu nenhuma fonte para sua afirmação, e outros biógrafos argumentam que os comentários pouco elogiosos das funcionárias mulheres — “baixas, atarracadas e mal formadas, incontestavelmente feias em todos os aspectos da aparência” — faz com que seja improvável que Engels tenha encontrado no chão de fábrica a jovem mulher espirituosa [witty] e de boa aparência que Marx se recorda.

As favelas de Manchester de meados do século XIX foram objeto do primeiro livro de Engels, distritos que ele conheceu muito bem graças à amante, Mary Burns. (Domínio público.)

Se Mary não foi uma operária, não haveria muitas outras formas pelas quais poderia ganhar a vida. Mary carecia de educação para lecionar, e o único emprego respeitável disponível era, provavelmente, o serviço doméstico. Um censo de 1841 sugere que Mary e sua irmã mais nova, Lizzy, trabalharam como empregadas domésticas durante um período. Uma “Mary Burn” da mesma idade e “nascida nesta paróquia” é registrada no lar de um mestre pintor chamado George Chadfield, e que, talvez, conforme Belinda Webb sugere, Burns assumiu esse serviço por oferecer acomodação. A mãe de Mary morreu em 1835, e, com sua irmã, tiveram que se entender com a madrasta, com quem seu pai se casou um ano depois. Talvez houvesse razões urgentes para que elas deixassem a casa do pai. Certamente, uma carreira no serviço doméstico teria ensinado Mary e Lizzy as habilidades necessárias para cuidarem da casa de Engels, o que fizeram por muitos anos a partir de 1843.

Entretanto, poucos historiadores do período acreditam que Mary prestasse aquele serviço. Webb, notando que Engels descrevia fazer frequentes e longas caminhadas pela cidade, argumenta que Mary teria tido pouquíssimo tempo de servir como guia de Manchester caso trabalhasse em alguma fábrica ou como doméstica, e que, talvez, pudesse ter sido uma prostituta. Webb nota que Burns foi descrita como vendedora de laranjas no Hall of Science de Manchester — e “venda de laranja” foi, por muito tempo, um eufemismo para o comércio do sexo. Nell Gwyn, a Prostituta Protestante do rei Carlos II, foi uma célebre vendedora de frutas no teatro Drury Lane, e o radical poeta Georg Weerth — conhecido de Mary e um dos famosos e mais próximos associados de Engels — compôs alguns versos enredados de double entendre nos quais descreveu uma meretriz irlandesa de olhos escuros chamada Mary e que vendia seus “suculentos frutos” a “amigos barbudos” nas docas de Liverpool.

Que o relacionamento de Engels com Mary teve um elemento sexual pode ser suposto por aquela que pode ser uma frase vulgar de Marx. Ao receber a notícia de que Engels havia despertado um interesse em fisiologia, o filósofo perguntou: “Você está estudando… em Mary?”.3Karl Marx a Friedrich Engels, Londres, 3 fev. 1851 (MECW, v. 38). (N. T.) Engels não acreditava em casamento — e sua correspondência revela um bom número de affaires —, mas ele e Mary permaneceram um casal por quase vinte anos.

Nada se sabe ao certo a respeito do envolvimento de Mary na vida política de Engels, mas é possível fazer muitas suposições. Edmund e Ruth Frow apontam que Engels descreveu o distrito-favela de Manchester conhecido como Little Ireland em uma riqueza de detalhes que ele o deve ter conhecido muito bem. Mary, argumentam, “como uma garota irlandesa de uma família grande […], deveria ter sido capaz de conduzi-lo entre as favelas […]. Sendo um estrangeiro de classe média, é improvável que ele teria saído vivo caso estivesse ali por conta própria, ou, certamente, sem as roupas do corpo”.

O interior de um barracão irlandês durante a Grande Fome de 1845-50. Engels viajou pela Irlanda com Mary Burns em 1856, quando quase todos os vilarejos ainda sofriam as consequências daquele desastre humanitário. (Domínio público.)

O conhecimento de Engels das piores favelas de Manchester é uma questão importante. Embora tenha nascido em um distrito industrial no vale do Ruhr e — conforme Gustav Mayer, um de seus biógrafos mais notáveis — “conhecesse desde a infância a real natureza do sistema fabril”, ele ficou chocado com a sujeira e a superlotação que encontrou em Manchester. “Jamais vi uma cidade construída em piores condições”, observou. Doença, pobreza, desigualdade, ausência de educação e esperança combinavam para que a vida na cidade fosse vista como insuportável para a maioria. A respeito dos capitalistas industriais, Engels escreveu: “Desconheço uma classe tão profundamente imoral, tão incuravelmente corrupta, tão incapaz de avançar para além de seu medular egoísmo”. Em uma ocasião, relatou que foi à cidade acompanhado de um daqueles homens, com quem conversou a respeito da “má arquitetura, da insalubridade, das condições horríveis dos bairros operários”. O homem o escutou em silêncio “e disse, na esquina onde se despediram: ‘E, apesar disso, aqui se ganha um bom dinheiro. Tenha um bom dia, sir’”.

Ser amigo das irmãs Burns também expôs Engels a alguns dos mais infames aspectos do imperialismo britânico do período. Embora nascida na Inglaterra, os pais de Mary eram de Tipperary, sul da Irlanda. Seu pai, Michael, trabalhou ocasionalmente como tintureiro, mas terminou seus dias na miséria, passando os últimos dez anos de vida em uma workhouse, do tipo que se fez notória em Oliver Twist. Isso, combinada à desgraça da Grande Fome que tomou a Irlanda entre 1845 e 1850, resultando em 1 milhão, ou mais, de irlandeses, homens, mulheres e crianças, mortos pela fome no coração do império mais próspero do mundo, consagraram as irmãs Burns como nacionalistas fervorosas. Mary acompanhou Engels em uma breve viagem à Irlanda em 1856, na qual visitaram quase dois terços daquele devastado país. Dizia-se que Lizzy era ainda mais radical. Conforme o genro de Marx, Paul Lafargue, Lizzy ofereceu abrigo a dois membros veteranos da revolucionária Irish Republican Brotherhood que foram libertados da custódia da polícia em 1867 depois de uma ousada operação organizada por três jovens fenianos conhecidos como os Mártires de Manchester.

Três jovens fenianos libertaram dois revolucionários irlandeses veteranos de uma viatura da polícia de Manchester em novembro de 1867. Os primeiros foram capturados e enforcados, mas os veteranos libertados, Thomas Kelly e Timothy Deasy, escaparam para os Estados Unidos. Algumas fontes afirmam que Lizzy auxiliou a dupla na fuga de Manchester. (Domínio público.)

Graças aos registros censitários e aos livros de preços de Manchester daquele período — e ao trabalho minucioso dos historiadores locais do trabalho — é possível traçar os movimentos de Engels e das irmãs Burns sob uma variedade de pseudônimos. Engels se passou por Frederick Boardman, Frederick Mann Burns e Frederick George Mann, e se apresentou como contador ou viajante comercial. Há lacunas nos registros — e lacunas no comprometimento de Engels tanto para com Manchester quanto para com Mary. Engels se ausentou da Inglaterra de 1844 até o final de 1849. Webb nota que, depois de seu retorno a Manchester, “manteve com Mary um relacionamento mais formal”, estabelecendo juntos uma casa em um subúrbio modesto. Lizzy se mudou para a casa do casal onde, aparentemente, trabalhou como doméstica, embora os detalhes sobre a organização da vida do grupo sejam muito difíceis de encontrar. Engels ordenou que quase todas as cartas pessoais que escreveu durante aquele período fossem destruídas depois de sua morte.

Engels parece ter apresentado Mary, ao menos a conhecidos próximos, como mais do que uma amiga, ou amante. “Com amor à Mrs. Engels”, escreveu o cartista Julian Harney em 1846. O próprio Engels disse a Marx que só sua necessidade de manter a posição entre seus pares o preveniu de ser mais aberto: “Vivo quase todo o tempo com Mary a fim de economizar dinheiro. Infelizmente, não posso manter os negócios sem residências oficiais. Se pudesse, viveria com ela o tempo todo”.

Engels e Mary se mudavam com frequência. Mantinham residências nas ruas Burlington e Cecil — onde as irmãs Burns parecem ter ganho dinheiro extra alugando os quartos vazios —, e, em 1862, o casal e Lizzy se mudaram para uma propriedade recém-construída em Hyde Road — a rua na qual os Mártires de Manchester libertariam Thomas Kelly e Timothy Deasy cinco anos depois. Mas o passar dos anos — e talvez as longas ausências de Engels a trabalho, questões particulares e revolucionárias — começaram a cobrar um alto preço. Eleanor Marx registrou que Mary “foi”, aos seus vinte anos, “bonita, espirituosa e charmosa […], mas, nos últimos anos de vida, bebia muito”. Isso pode ter sido mais do que uma crença familiar — Eleanor tinha só oito anos quando Burns morreu, e admitiu, em outra carta, que “não conhecera Mary” —, mas isso parece corresponder bem o suficiente aos fatos conhecidos. Quando Burns morreu, em 6 de janeiro de 1863, ela tinha só quarenta anos.

Jenny Marx (nascida Jenny Westphalen) em 1844, membro da aristocracia prussiana. (Domínio público.)

Se é a morte, e não a vida de Mary Burns, que os pesquisadores têm por foco, isso se justifica porque isso ocasionou uma ruptura momentânea entre Engels e Marx — a única registrada em quatro décadas de forte amizade. Os primeiros sinais de discórdia datam de muitos anos antes. Durante uma temporada na Bélgica, entre 1845 e 1848, na qual os dois escreveram o Manifesto comunista, Mary foi viver em Bruxelas com Engels — naquele tempo, uma aventura incomum para uma pessoa de seu sexo e classe. Jenny Marx tinha algumas poucas amizades entre as mulheres operárias, e ficou, sem dúvida, chocada quando Engels apresentou sua amante como modelo para a mulher do futuro. Burns, pensava Jenny, era “muito arrogante”, e observou, com sarcasmo, que “este modelo abstrato aparentou-me verdadeiramente repulsivo aos meus olhos”. Simon Buttermilch registrou que Marx “indicou, por meio de um significativo gesto e sorriso, que sua esposa não seria, sob quaisquer circunstâncias, apresentada à companheira de Engels” quando estes dois apareceram juntos em uma reunião de operários.

Foi nesse pano de fundo que Engels escreveu a Marx para informar o amigo da morte de Mary. “Ontem à noite, Mary foi cedo para a cama”, escreveu, “e , à meia-noite, quando Lizzy subiu as escadas, ela já havia morrido. Repentinamente. Doença cardíaca, ou derrame. Recebi a notícia nesta manhã. Na noite de segunda-feira, ela estava bem. Não posso dizer como me sinto. A pobre garota me amava de todo o coração.”4Friedrich Engels a Karl Marx, Manchester, 7 jan. 1863 (MECW, v. 41). (N. T.)

Marx se compadeceu de modo breve. “Isso é extraordinariamente difícil para você”, escreveu, “que tinha um lar com Mary, livre e retirado de toda a sujeira humana, tanto quanto lhe agradava.” Mas o restante da missiva foi dedicado a um longo relato dos próprios infortúnios, terminando com um apelo por dinheiro. “Todos os meus amigos”, respondeu Engels com raiva, “incluindo filisteus próximos, demonstraram-me, neste momento em que estou profundamente atingido, mais compaixão e amizade do que eu poderia esperar. Você achou este momento apropriado para exibir a superioridade de seu frio intelecto.”5Friedrich Engels a Karl Marx, Manchester, 13 jan. 1863 (MECW, v. 41). (N. T.)

Engels no final da vida. Engels morreu em 1895, aos 74 anos. (Domínio público.)

Marx respondeu se desculpando e oferecendo condolências mais elaboradas. Culpou o tom da primeira carta nas demandas da esposa por mais dinheiro. “O que me deixou particularmente irritado”, escreveu, “foi que eu não informei você adequadamente de nossa verdadeira situação.”6Karl Marx a Friedrich Engels, Londres, 24 jan. 1863 (MECW, v. 41). (N. T.) Mike Gane, entre outros escritores, suspeitam que Marx se opunha ao amor de Engels por uma mulher da classe operária, não em razão da classe, mas porque a relação era burguesa e, portanto, violava os princípios do comunismo. Seja lá qual fora a razão do desentendimento, Engels pareceu satisfeito quando este foi superado.7Friedrich Engels a Karl Marx, Manchester, 26 jan. 1863 (MECW, v. 41). (N. T.)

Engels viveu com a irmã de Mary por mais quinze anos. Pode-se levantar dúvidas se a relação foi passional, como a que desfrutou com Mary, mas Engels certamente gostava muito de Lizzy Burns. Pouco antes dela ter sido arremetida por alguma espécie de tumor em 1878, Engels correspondeu ao desejo de morte dela e eles se casaram. “Ela foi uma genuína proletária de origem irlandesa”, escreveu Engels, “e seu apaixonado e inato sentimento por sua classe foi de grande valor para mim, e me apoiou nos momentos de crise mais do que todo o refinamento e cultura das jovens damas educadas e devotas poderia oferecer.”8Friedrich Engels a Julie Bebel, Londres, 8 mar. 1892 (MECW, v. 49). (N. T.)

Historiadores permanecem divididos sobre a importância das relações de Engels com as irmãs Burns. Muitos biógrafos têm visto Mary e Lizzy como nada mais além do que parceiras sexuais e que também cuidavam da casa, algo que raramente poderia se esperar que um cavalheiro da Era Vitoriana fizesse por si mesmo. Terrell Carver9Terrell Carver, Friedrich Engels, His Life and Thought. Londres: Palgrave Macmillan, 1990, p. 159. (N. T.) sugeriu que, “no amor, Engels não pareceu buscar alguém intelectualmente à altura”.

Outros veem Mary Burns como muito mais importante. “Eu queria conhecer-vos em vossas casas”, escreveu Engels na dedicatória “às classes trabalhadoras da Grã-Bretanha” em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, seu primeiro livro. “Observar-vos em vossa vida cotidiana, debater convosco vossas condições de vida e vossos tormentos, eu queria ser uma testemunha de vossas lutas”. Engels jamais poderia ter realizado aquela ambição sem um guia. Com certeza não no curto período de sua primeira temporada na Inglaterra. Realizá-la o marcou para toda a vida. “Vinte meses em Manchester e Londres”, observou W. O. Henderson10William Otto Henderson, The Life of Friedrich Engels, In Two Volumes. Londres: Frank Cass, 1976, v. 1, p. 26. (N. T.) — dos quais dez ou quinze meses juntos de Mary Burns — “tornaram Engels, de um jovem inexperiente, em um homem jovem que encontrara um propósito na vida.”

Fontes

Livros

CARVER, Terrell. Friedrich Engels, His Life and Thought. Londres: Palgrave Macmillan, 1990.

DELANEY, William. The Green and the Red: Revolutionary Republicanism and Socialism in Irish History, 1848-1923. Nova York: Writer’s Showcase, 2001.

FROW, Edmund; FROW, Ruth. Frederick Engels in Manchester and The Condition of the Working Class in England. Salford: Working Class Movement Library, 1995.

GANE, Mike. Harmless Lovers?: Gender, Theory and Personal Relationship. Londres: Routledge, 1993.

HENDERSON, William Otto. Marx and Engels and the English Workers, and Other Essays. London: Frank Cass, 1989.

HENDERSON, William Otto. The Life of Friedrich Engels, In Two Volumes. Londres: Frank Cass, 1976.

HUNT, Tristram. The Frock-Coated Communist: The Revolutionary Life of Friedrich Engels: The Life and Times of the Original Champagne Socialist. Londres: Penguin, 2010.

JENKINS, Mick. Frederick Engels in Manchester. Manchester: Lancashire and Cheshire Communist Party, 1964.

WHITFIELD, Roy. Frederick Engels in Manchester: The Search for a Shadow. Salford: Working Class Movement Library, 1988.

Ensaios

BOER, Roland. “Engels’ Contradictions: A Reply to Tristram Hunt”. International Socialism, Londres, n. 133, 2012.

GERMAN, Lindsay. “Frederick Engels, Life of a Revolutionary”. International Socialism, Londres, n. 65, 1994.

HERBERT, Michael. “Frederick Engels and Mary and Lizzie Burns””. Manchester Radical History, Londres, Manchester, 2010.

Teses

WEBB, Belinda. Mary Burns. Kingston upon Thames, Londres: Faculty of Arts and Social Sciences, Kingston University, 2012. Tese (PhD, Literatura Inglesa).

Cartas

“JENNY MARX a Karl Marx, Trier, 24 mar. 1846”. In: MECW. Marx and Engels Collected Works. Londres: Lawrence Wishart, 1975-2004, v. 38.

“FRIEDRICH ENGELS a Karl Marx, Paris, 9 mar. 1847”. In: MECW. Marx and Engels Collected Works. Londres: Lawrence Wishart, 1975-2004, v. 38.

“KARL MARX a Friedrich Engels, Londres, 3 fev. 1851” . In: MECW. Marx and Engels Collected Works. Londres: Lawrence Wishart, 1975-2004, v. 38.

“FRIEDRICH ENGELS a Karl Marx, Manchester, 7 jan. 1863”. In: MECW. Marx and Engels Collected Works. Londres: Lawrence Wishart, 1975-2004, v. 41.

“KARL MARX a Friedrich Engels, Londres, 8 jan. 1863”. In: MECW. Marx and Engels Collected Works. Londres: Lawrence Wishart, 1975-2004, v. 41.

“FRIEDRICH ENGELS a Karl Marx, Manchester, 13 jan. 1863”. In: MECW. Marx and Engels Collected Works. Londres: Lawrence Wishart, 1975-2004, v. 41.

“KARL MARX a Friedrich Engels, Londres, 24 jan. 1863”. In: MECW. Marx and Engels Collected Works. Londres: Lawrence Wishart, 1975-2004, v. 41.

“FRIEDRICH ENGELS a Karl Marx, Manchester, 26 jan. 1863”. In: MECW. Marx and Engels Collected Works. Londres: Lawrence Wishart, 1975-2004, v. 41.

“CONFISSÃO de Friedrich Engels, Londres, início abr. 1868”. In: MECW. Marx and Engels Collected Works. Londres: Lawrence Wishart, 1975-2004, v. 43.

“FRIEDRICH ENGELS a Julie Bebel, Londres, 8 mar. 1892”. In: MECW. Marx and Engels Collected Works. Londres: Lawrence Wishart, 1975-2004, v. 49.

MIKE DASH é escritor colaborador de história para a Smithsonian Magazine. Antes, foi autor do premiado blog A Blast from the Past.

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