Prefácio de Victor Kiernan ao A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Friedrich Engels — tradução

Victor Kiernan
“Foreword”

In: Friedrich Engels, The Condition of the Working Class in England. Ed. e pref. de Victor Kiernan. Londres: Penguin, 1987. (Classics).
ISBN 978-0-14-044486-5

Tradução de Felipe Cotrim

Friedrich Engels tinha 24 anos quando escreveu seu livro a respeito da Inglaterra, uma das obras mais notáveis já produzidas por um homem tão jovem. O livro transborda o otimismo da juventude, confiante na rápida chegada de uma era de ouro. Ao reler o livro duas décadas depois, seu amigo Karl Marx1Karl Marx a Friedrich Engels, 9 abr. 1863; Karl Marx and Friedrich Engels, Correspondence 1846-95, a Selection, org. de Dona Torr (Londres, 1934), p. 147. lhe escreveu lamentando o “maldito contraste desagradável” entre um presente cinzento e as esperanças crescentes de 1844, sem “dúvidas eruditas e científicas”, esperanças que impregnavam as páginas de “calor e humor joviais”. Engels já era um escritor experiente e muito culto, embora em grande parte autodidata. Antes que pudesse concluir o ensino médio, seu pai o transferiu para um escritório da empresa têxtil da família em Barmen, na Renânia, onde Engels nasceu em 28 de novembro de 1820, o mais velho de oito filhos. Ele combinava a leitura voraz com a equitação extenuante, a esgrima e a natação, o que lhe deu uma constituição à altura de todas as exigências e o manteve imensamente ativo até a velhice.

Barmen fica em Wuppertal, ou vale do rio Wupper, que flui para o oeste até o baixo Reno; foi uma das áreas em que a indústria moderna da Alemanha estava começando. Era uma área inquieta devido às tensões sociais que isso trazia consigo e porque a Renânia havia sido francesa por vinte anos antes de ser transferida, pelo acordo de paz de 1814-5, à Prússia, um reino cujo centro de gravidade ficava no nordeste da Alemanha. Um ponto de encontro da Europa Ocidental e Oriental, a Renânia era um ambiente — compartilhado por Engels e Marx, nascido dois anos antes — bem adequado para estimular mentes jovens e promover uma visão ampla. O ano de 1820 foi de revoltas na Europa; e 1830 foi outro. Em todos os lugares, estavam surgindo lutas contra os despotismos reacionários restaurados depois do triunfo das monarquias aliadas sobre Napoleão.

Nessa atmosfera, e reagindo contra a estreiteza incômoda de um lar governado por um velho fanático e despótico — como Engels2Engels a Marx, 17 mar. 1845; Letters of the Young Engels 1838-45 (Moscou, 1976), p. 231. chamava seu pai —, ele se tornou um radical aos vinte anos e mais do que meio socialista. Ao mesmo tempo, ele estava se libertando dos grilhões do dogma religioso, opressivo nos círculos sociais em que nascera, e estava chegando à conclusão de que a religião oficial era pouco mais do que um artifício para manter as classes mais baixas fracas e resignadas. Seu primeiro texto publicado, em anonimato, foi acerca da difícil situação dos trabalhadores em Wuppertal.

Deve ter sido em parte para afastá-lo de conexões subversivas que, depois de cumprir o período de serviço militar em Berlim, seu pai decidiu mandá-lo para a Inglaterra, para aprender mais sobre métodos de negócios em uma fábrica de fiação de Manchester, da qual era sócio.3Para explicações alternativas à decisão, ler Steven Marcus, Engels, Manchester and the Working Class (Londres, 1974), pp. 88-9. O jovem Friedrich pode ter se sentido como Hamlet, levado para a Inglaterra pelo tio, mas a perspectiva de ver um país muito à frente de todos os outros em termos de desenvolvimento industrial deve ter tido seus atrativos. Na ida, ele passou por Colônia, onde teve um primeiro encontro casual com Marx, e, em novembro de 1842, chegou a Londres, muito impressionado com a multidão de navios no Tâmisa, “a maravilha da grandeza da Inglaterra”. Edward Hallett Carr4Edward Hallett Carr, Karl Marx (Londres, 1934), p. 34. Sobre a história recente e o planejamento de Manchester, consulte a seção inicial de Marcus, op. cit. Ler também as comparações instrutivas apresentadas em Manchester and São Paulo: Problems of Rapid Urban Growth, org. de John Wirth e Robert Jones (Stanford, CA, 1978). comenta sobre a adaptabilidade de Engels, somada a uma faculdade de trabalho surpreendentemente rápida: ele “se sentia em casa na fábrica em Manchester tão prontamente quanto no quartel em Berlim”. Nenhuma de suas cartas dessa época sobreviveram, mas logo ele estava ocupado explorando, conhecendo os socialistas owenistas e os cartistas, escrevendo reportagens para periódicos, indo a reuniões políticas. Em um ensaio redigido muitos anos mais tarde, ele relembrou uma reunião da Anti-Corn Law League na prefeitura de Salford em 1843, na qual ele esteve presente e que se transformou em uma colisão entre a classe média defensora da liga e os cartistas das classes trabalhadoras.5Engels, The Labour Standard, Londres, 9 jul. 1881. Durante todo aquele tempo, ele estava reunindo material para seu livro a respeito das classes trabalhadoras, escrito no final de 1844 e início de 1845, depois de seu retorno à Alemanha, e publicado em Leipzig.

Situada em seu emaranhado de três rios — um deles, o Irwell, dividindo-a de sua associada menor, Salford —, Manchester era uma cidade antiga, mas durante a maior parte de sua história foi apenas uma vila mercantil [market town] com um senhorial; não era nem sequer um distrito [borough]. Foi só em 1838 que lhe foi concedida autonomia municipal; seu crescimento tumultuado poderia ter sido um pouco menos desordenado. Até meados do século, era essencialmente um centro industrial, e não comercial. A atividade intelectual era considerável, mas era para um lado mais sombrio da vida que os olhos de Engels estavam voltados. Ele estava bem preparado pelo que havia visto em seu país para ser um observador atento do que encontrou em Manchester: os mesmos males, embora multiplicados. Ele estava assistindo a uma batalha de todos contra todos, a guerra irrestrita da concorrência. Sua reação a isso não foi só negativa, equivalente à repulsa contra o maquinário e tudo o que ele representava de homens como Wordsworth ou Southey. Engels não era Gandhi, e os devaneios de uma fuga dos horrores industriais para um passado idealizado não o atraíam. O vapor estava impulsionando a humanidade para o futuro, em direção a uma era em que a antiga escravidão da labuta e da pobreza poderia ser enfim superada. Ele via nisso um avanço histórico tão importante quanto a Revolução de 1789 na França, ou a nova filosofia na Alemanha. Ele ficou encantado com “a importância incomensurável da energia mecânica”.

O sul de Lancashire, pobre do ponto de vista agrícola, era uma região de indústria caseira: suas fábricas de algodão em expansão eram alimentadas sobretudo com a mão de obra deslocada do tear, embora os tecelões manuais ainda fossem numerosos na década de 1840. Em seu esboço da vida anterior à abertura dos portões, ou mandíbulas, das fábricas, Engels seguiu o livro de Peter Gaskell, de 1833, sobre o industrialismo, que exagerava a inércia dócil do artesão do século XVIII. Mas não era muito irrealista saudar o industrialismo como uma força que arrastava a humanidade dolorosamente para fora de uma existência vegetativa, um torpor mental, que poderia ser confortável, mas que “não era digno de seres humanos”. Não ocorreu ao jovem e ardente reformador perguntar se o conforto torpe não seria o estado mais natural e agradável para a maioria dos homens, aquele para o qual, quando retirado, eles instintivamente anseiam voltar. Sempre foi um axioma para Engels, assim como para Marx, que o homem precisa evoluir, expandir-se, realizar seu potencial milagroso; embora o estudo da história confirmasse sua crença, fixada indelevelmente em sua mente por aqueles dois anos na Inglaterra, de que aquele só poderia ser um processo trágico, imprudentemente pródigo nos sacrifícios que exige. Engels pôde encarar aquela dura verdade porque a Inglaterra aprofundou a convicção que ele já tinha de que as energias titânicas que estavam sendo liberadas deveriam, em pouco tempo, abalar a velha ordem e abrir caminho para uma vida melhor.

À época, Engels não poderia esperar passar a maior parte de sua vida na Inglaterra. Ele escreveu esse primeiro livro em alemão; o qual não foi publicado em inglês até que uma edição estadunidense fosse publicada em 1886, ou na Inglaterra até que aquela tradução fosse reeditada em 1892. Seu objetivo inicial, como ele informou a Marx durante sua composição, era denunciar a burguesia inglesa, e ele também queria dizer à burguesia alemã que ela era “tão ruim quanto a inglesa, só que não tão corajosa”.6Engels a Marx, 19 nov. 1844; Letters of the Young Engels, pp. 206-7. Ele pode ter tido alguma esperança de assustá-la para que ela fizesse reformas e concessões; mas suas advertências teriam mais probabilidade de assustar os empresários alemães para que eles se unissem às antigas forças dominantes — como de fato aconteceu pouco tempo depois. Podemos nos lembrar de como, no romance clarividente de Jack London,7Jack London, The Iron Heel (1907), cap. 5. de 1907, sobre o fascismo, a palestra do herói socialista a respeito da revolução vindoura transformou a elite empresarial ali reunida, “capitães da indústria e lordes da sociedade”, em “selvagens que rosnavam e grunhiam em trajes para noite”.

É mais fácil supor que Engels estivesse esperando acelerar a conversão dos alemães mais jovens e instruídos ao socialismo, o que ele acreditava já estar em andamento. A riqueza da Inglaterra — a qual ele apresentava de modo laudatório — estava sendo adquirida a um custo desumanizador, com o descarte de muito do que há de melhor na natureza humana; e isso acompanhava a indiferença brutal, a alienação do homem em relação ao homem, que parece tê-lo atingido de modo doloroso desde seus primeiros dias na Inglaterra. Por mais que achasse que as coisas estavam ruins em seu próprio país, ele ficou chocado ao descobrir como os pobres e necessitados da Grã-Bretanha estavam completamente abandonados à própria sorte. Para a massa de artesãos tradicionais, essa deserção era sentida e ressentida. Como diz Edward Palmer Thompson,8Edward Palmer Thompson, The Making of the English Working Class (Londres, 1963), pp. 530, 544. a noção de um governo paternalista que cuida de todo o seu povo tinha um apelo forte, embora nebuloso, e Ned Ludd, o líder mítico dos destruidores de máquinas, era para eles um defensor do direito ancestral. A Alemanha era a terra natal do oficialismo, onde tudo era regulado, para o bem, ou para o mal, pelas autoridades. “Não preciso provar agora aos meus leitores alemães”, escreveu Engels, que toda classe dominante tem o dever de proteger de males como a fome todos aqueles que estão sob seu domínio. A previdência social foi criada de modo pioneiro por Bismarck, o arquiprussiano.

Engels iniciou sua tarefa autoimposta com a minúcia alemã que sempre o caracterizou. Ele se aprofundou na ampla gama de relatórios e estatísticas disponíveis — havia uma sociedade de estatística em Manchester desde 1833 — e também em escritos não oficiais, inclusive um panfleto recente sobre os pobres de Manchester escrito por um cônego local. Engels lançou sua rede de modo amplo; sua classe trabalhadora incluía artesãos, tecelões manuais, trabalhadores rurais, embora sua principal concentração fosse na categoria mais recente e de crescimento mais rápido, os trabalhadores de fábrica, liderados pelos operários têxteis de Lancashire. Para confirmar ou complementar o que lia, confiava em seus próprios olhos e ouvidos — e, às vezes, no nariz —, aprendendo algo em primeira mão sobre Londres, visitando Leeds e outros centros industriais do norte do país e, acima de tudo, abrindo caminho, como poucos observadores fizeram, pelo labirinto barulhento da Manchester proletária. Quando partiu, ele podia se gabar de a conhecer tão intimamente quanto conhecia sua própria cidade natal.

Manchester consistia em um núcleo central de fábricas e escritórios e em um amplo cinturão de distritos onde os trabalhadores moravam, muitos deles em casebres ou porões úmidos, amontoados porque, com as longas horas de trabalho e pouco, ou nenhum, transporte público, eles precisavam morar perto do trabalho. Afastadas do centro ficavam as residências dos mais abastados, que podiam viver na cidade por anos e não ver quase nenhuma pessoa daquela grande massa de plebeus [the great unwashed]. Romper esse apartheid não seria fácil. Engels queria conhecer não apenas as favelas, mas também seus habitantes; “observá-los em sua vida cotidiana”, como ele lhes disse em sua dedicatória “Às classes trabalhadoras da Grã-Bretanha”, e “conversar com vocês sobre suas condições e queixas”. Mas essa dedicatória não era para ser publicada na Inglaterra,* A dedicatória “Às classes trabalhadoras da Grã-Bretanha” foi escrita por Engels em inglês e com a intenção — como ele informou a Karl Marx em carta de 19 de novembro de 1844 — de a imprimir separadamente e de a enviar aos políticos e às personalidades mais importantes daquele país. Nas edições alemãs de 1845 e 1892 do A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, a dedicatória foi publicada em inglês. Todavia, ela não foi incluída nas edições estadunidense e britânica, de 1887 e 1892, respectivamente. (Nota do Tradutor.) e o livro não revela muito sobre os contatos pessoais que ele conseguiu fazer à época. Ele deve ter encontrado guias. A garota da classe trabalhadora irlandesa Mary Burns, com quem ele viveu por muitos anos, parece ter sido uma companheira de suas primeiras explorações.

No decorrer do livro, a mensagem mais insistente é a de indignação com a situação dos pobres. Engels reconheceu que, em alguns distritos, as coisas eram menos ruins do que em outros. Talvez ele pudesse ter dado mais atenção a alguns trabalhadores mais abastados, homens qualificados em ofícios como engenharia. Mas sua preocupação era dar um relato autêntico de como as condições eram intoleravelmente ruins para a grande maioria. Sua própria satisfação com a vida poderia o tornar ainda mais impressionável quando se deparasse com o espetáculo da miséria em massa. “Com quão pouco um ser humano pode manter o corpo e a alma unidos”, exclama ele em um determinado momento. A grande mortalidade infantil, causada por acidentes ou negligência, o levou a refletir que, para uma criança, mesmo a morte mais torturante pode ser a salvação de uma vida de miséria e sem esperança.

Do lado positivo, o “resultado mais poderoso” da revolução industrial foi o surgimento de um proletariado, cada vez mais homogêneo, como “uma classe permanente”, uma força capaz de transformar “este mundo injusto”, como Shelley o chamou. Em vez de deplorar, como Thomas Carlyle, a substituição das antigas relações patriarcais pelo “nexo do dinheiro”, reduzindo o vínculo entre patrão e trabalhador a um cálculo monetário puro e simples, Engels saudou esse fato como uma ruptura com o passado estúpido e monótono em que o trabalhador era “ intelectualmente nulo”, cego em relação à sua própria escravidão. Até mesmo os trabalhadores rurais, reduzidos agora a meros diaristas, estavam se livrando do velho torpor, ainda predominante na Alemanha, e se mostrando tão rebeldes quanto qualquer cidadão da cidade. Seu relato sobre a pobreza urbana é um complemento extraordinário da fome no campo, retratada por William Cobbett em Rural Rides [Viagens rurais] e que eclodiu antes da morte desse jornalista político, em 1835, nos distúrbios do Capitão Swing, dos quais Engels tomou a devida nota.

Engels superestimou a velocidade e a completude com que todas as diversas espécies de trabalhadores estavam sendo assimiladas em um único bloco. Ele estava certo ao ver as grandes cidades como “o berço dos movimentos trabalhistas”, uma vez que a aglomeração de trabalhadores despertava a consciência de classe. E ele estava certo em grande medida quando falou que as classes trabalhadoras e as burguesias estavam se separando em “duas nações radicalmente diferentes, tão diferentes quanto as diferenças de raça poderiam torná-las”. Em muitos aspectos, elas permanecem assim até hoje.

“Só uma raça fisicamente degenerada”, escreveu ele, poderia se sentir em casa sob o tratamento a que centenas de milhares de pessoas estavam sendo submetidas. Em muitas outras passagens, Engels está claramente convencido de que eles estavam se degenerando; a debilidade infantil, em particular, estava levando à “debilitação de toda a raça de trabalhadores”. Ele dificilmente deixaria de concordar com o veredicto de um relatório médico de que o vigor físico e mental dos trabalhadores estava sendo minado.9Uma tese da Universidade de Edimburgo de 1885 a respeito da saúde e do físico dos trabalhadores de Lancashire, de H. Stewart, cujo pai havia sido um cirurgião de Lancashire antes dele, confirma amplamente essa impressão. (Trata-se da monografia On the Effect That the Trade and Mode of Living Have upon the Health and Physique of the Lancashire Working People [Sobre o efeito que o trabalho e o modo de vida têm sobre a saúde e o físico dos trabalhadores de Lancashire.]) E estava convencido de que o tédio da rotina da fábrica, que exigia atenção suficiente para impedir que o trabalhador pensasse em qualquer outra coisa — como o lendário sapateiro aparentemente era capaz de fazer —, devia ter um efeito debilitante para a mente. Nascido em Manchester, Thomas De Quincey pensava com a mesma repulsa da “maldição original do trabalho”, que pesava sobre sua cidade natal, “dominando não só os corpos dos homens, como ocorreu com os escravos ou os criminosos nas minas, mas trabalhando por meio da vontade ardente”.10Robert Hope Case, Lancashire in Prose and Verse, an Anthology (Londres, 1930), p. 82. A ignorância, não remediada por nada que valha a pena chamar de educação, era outra desvantagem à qual Engels se referia com frequência. Ele achava que os empresários não estavam dispostos a educar as massas por medo de que noções perturbadoras entrassem em suas cabeças. Na verdade, alguns estavam começando a acreditar que a educação poderia ser bem utilizada para doutrinar as crianças das classes trabalhadoras com ideias adequadas à sua posição social. Um desses pensadores esclarecidos foi o Marquês de Londonderry, proprietário de muitas minas de carvão no nordeste.11Ler Robert Colls, “‘Oh Happy English Children!’: Coal, Class and Education in the North-East”, Past and Present, n. 73 (1976).

Para agravar tudo isso, havia a insegurança permanente. Um emprego poderia desaparecer a qualquer momento. Não era de surpreender que os homens fossem propensos a esbanjar dinheiro quando tinham algum, mas esse modo de vida era “desmoralizante acima de todos os outros”. Assim como os marxistas mais tarde, Engels argumentou que o capitalismo deveria ter um exército de reserva de mão de obra para ser utilizado quando os negócios crescessem e fosse necessária uma produção extra. Em outras épocas, multidões ficavam desempregadas e tinham de se manter vivas o melhor que podiam. Havia multidões ociosas nas ruas quando ele chegou a Manchester, que estavam aprendendo a pedir esmolas não de modo humilde, mas de modo ameaçador.

O desemprego foi agravado, em curto prazo, pelo menos, pelos avanços tecnológicos. Engels discute isso em um estilo bastante moderno. Ele também estava interessado no debate a respeito se as novas máquinas pressionavam os salários para baixo. Ele poderia citar Andrew Ure, aquele apóstolo da livre-iniciativa, a respeito das máquinas que eram inventadas com o propósito de combater a resistência dos trabalhadores. O colega escocês de Ure, James Nasmyth,12James Nasmyth, An Autobiography, org. de Samuel Smiles (nova ed., Londres, 1885), p. 192; cf. pp. 295-6. confirma isso quando nos conta como a demanda por máquinas-ferramenta foi estimulada pelo desejo de contornar “os esforços pouco confiáveis do trabalho manual […]. As máquinas nunca ficavam bêbadas […], nunca se ausentavam do trabalho; não faziam greve por salários”. Um viajante estadunidense, Ralph Waldo Emerson,13Ralph Waldo Emerson, English Traits, Representative Men, and Other Essays (Everyman, 1908), p. 79. usou quase as mesmas palavras quando falou de um tumulto em Stalybridge, perto de Manchester, que fez com que os empregadores ansiassem por fiandeiras de um tipo “que não se rebelassem, nem resmungassem, nem fizessem careta, nem greves por salários, nem emigrassem”. A fiandeira mecânica [self-acting mule] foi a resposta. Aqui estava o sonho incessante do patrão, que se aproxima de seu ponto culminante hoje. Uma nova máquina no chão de fábrica mencionada por Engels, a Homem de Ferro [Iron Man], parece uma ancestral da raça de robôs que invade as oficinas do mundo atualmente.

Nasmyth14Nasmyth, op. cit., p. 214. relata de modo condescendente como conseguiu debelar uma greve ao anunciar, na Escócia, a contratação de mecânicos e garantir 64 confiáveis fura-greves [blacklegs]. A imigração irlandesa, às vezes promovida pelos empregadores pelo mesmo motivo, estava contribuindo mais do que qualquer outra medida para piorar a concorrência por empregos, e os irlandeses católicos eram muito menos assimiláveis do que os escoceses. Eles vinham de um campesinato empobrecido pelo domínio britânico e pelo latifúndio, e, em Manchester, assim como em Glasgow, eles eram a personificação da pobreza em sua forma mais extrema. Little Ireland, um bairro irlandês de Manchester próximo à estação Oxford Road, mais ou menos onde ela cruzava o rio Medlock, pareceu a Engels o bairro mais nauseante de todos. Isso o tornou mais consciente do que alguns socialistas posteriores, em discussões sobre a teoria de Marx da miséria crescente das massas, de que as necessidades humanas não são uniformes: um inglês não poderia subsistir com tão pouco quanto um irlandês. Do mesmo modo, Henry Mayhew,15Henry Mayhew, London Labour and the London Poor (1851; ed. resumida por P. Quennell, Londres), p. 280. estudando os pobres de Londres, constatou que um menino de rua irlandês podia se manter com menos do que um menino judeu, que precisava de um centavo por dia para se divertir. Em um romance de Charles Lever, um camponês irlandês que viaja a pé pela Inglaterra em uma época de crise industrial fica intrigado com as queixas de pobreza. Aos seus olhos, as coisas parecem bastante confortáveis. “Mas a pobreza, afinal de contas”, comenta o autor, “é meramente relativa.”16Charles Lever, St Patrick’s Eve (Port Sunlight), p. 326.

Cerimônia de inauguração da estátua de Friedrich Engels, em agosto de 2017. (Joel Fildes/Shady Lane Productions.)

O livro de Engels é marcado pelo que, às vezes, deve parecer uma incongruência entre o retrato de uma classe oprimida, atrofiada no corpo e na mente, e a confiança dele no movimento trabalhista emergente, “as tentativas do proletariado de se elevar acima desse rebaixamento”. Segundo ele, quanto mais próximo o envolvimento dos trabalhadores com o novo industrialismo, mais clara seria a compreensão de sua posição, mais alta entre os operários das fábricas e mais baixa entre os trabalhadores rurais. O fato de que os operários estavam ganhando terreno rapidamente contra os capitalistas — ou as classes médias, como Engels os chama desajeitadamente, uma vez que o termo capitalista ainda não era de circulação comum — deve ser considerado uma das ideias que ele mais tarde confessou ter sido excessivamente otimista durante a juventude. Assim como sua afirmação de que um trabalhador quase analfabeto poderia muito bem ter sagacidade prática suficiente para entender tanto seus próprios interesses quanto os da nação. Ele contava que as classes trabalhadoras se tornariam “os verdadeiros líderes intelectuais da Inglaterra”, algo que ela não alcançou nem demonstrou qualquer desejo de alcançar. Discutindo o conflito entre as salas de leitura cartistas e os instituto de mecânica planejados por liberais burgueses como Henry Brougham para afastar as mentes dos trabalhadores da agitação social, ele soa muito otimista quando nos garante que a maioria dos leitores de poetas como Percy Bysshe Shelley e Lord Byron, ou de pensadores como Jeremy Bentham e William Godwin, eram trabalhadores. Havia, é verdade, uma elite de trabalhadores intelectuais heroicamente autodidatas,17David Vincent, Bread, Knowledge and Freedom: A Study of Nineteenth-Century Working Class Autobiographies (Londres, 1981), por exemplo, p. 200. mas eles eram uma minoria, em muitos aspectos distanciados da base.

Parece haver uma lacuna, mais uma vez, entre uma imagem da sociedade “em estado de dissolução”, com o crime desenfreado, o todos contra todos — o que Engels às vezes chamava de estado de “guerra social” —, e a tese de que a burguesia e o proletariado estavam “se dividindo em dois grandes campos”. Os assalariados estavam de fato aprendendo a se unir, e não apenas os operários das fábricas, mas também os trabalhadores manuais, como os tecelões de meias de Midlands ou os tecelões de seda de Londres. Como disse Engels, eles estavam se unindo. Escrevendo sobre Oldham, cidade da Grande Manchester, e a década de 1830 em particular, John Foster18John Foster, Class Struggle and the Industrial Revolution (Londres, 1974), p. 149. aponta para “o peso absoluto do compromisso de massa” que “essa primitiva classe trabalhadora inglesa” era capaz de exibir. Engels discutiu de modo objetivo e inconcluso a questão de até que ponto as leis da economia poderiam ser desafiadas pelos trabalhadores que se organizavam para limitar a concorrência entre si. Ele parece ter sentido que a principal virtude de uma greve era demonstrar a vontade de resistir, uma recusa desafiadora de ser degradado ao nível desumano das máquinas às quais os homens estavam atrelados. Ele prestou um generoso tributo à greve de quatro meses, em 1843, de 40 mil mineiros de carvão, até recentemente uma população segregada, ignorante e “meio selvagem”; uma luta mantida mesmo quando as famílias foram expulsas de suas habitações e obrigadas a acampar ao ar livre, até que finalmente os fundos se esgotaram e os homens tiveram que voltar para suas cavernas sombrias.

Engels viu claramente que a ação industrial sem ação política não poderia ser suficiente. Ele considerava “o poder do Estado”, assim como o do dinheiro, como um suporte para a burguesia. Notou como a justiça distribuída em nível local pelos juízes era tendenciosa, todos pertencentes às classes proprietárias, proprietários de minas, por exemplo; e ela era quase tão feudal quanto em alguns países atrasados do continente. Por outro lado, ele podia falar às vezes da intervenção do Estado para proteger as crianças contra a rapacidade dos empregadores. Ele reconhecia a sobrevivência de um paternalismo mais antigo, que em seus melhores representantes, como em Lord Shaftesbury, era uma repulsa contra a sociedade sem alma, “composta inteiramente de átomos”, que havia surgido. Na opinião de Engels, a legalização dos sindicatos, concedida em 1824, não poderia ter acontecido sob o governo Whig, depois da mudança de poder provocada pela Reform Act de 1832. A partir de então, disse ele, a classe dominante “na Inglaterra, como em todos os outros países civilizados, é a burguesia”; a aristocracia era meramente parte da sociedade capitalista. Na realidade, as duas classes permaneceram distintas por mais meio século, e a plutocracia na qual elas estavam se fundindo no final da Era Vitoriana manteve fortes traços do Antigo Regime até os dias de hoje.

Na visão de Engels, a burguesia, embora ele acreditasse que ela estivesse agora no comando, não era apenas insensível e perversa, mas “enfraquecida e preguiçosa”, uma classe muito incapaz de sustentar o domínio político e que provavelmente não o manteria por muito tempo. Mais tarde, ele teve que modificar substancialmente essa visão a fim de explicar a tenacidade do poder da burguesia. Mas a relutância das burguesias inglesas em fazer uma faxina na velha ordem, sobretudo no que se refere ao latifúndio parasitário, faz com que não seja difícil entender o primeiro julgamento dele. Sua estada em Manchester, palco do massacre de manifestantes a favor da reforma parlamentar em 1819 em Peterloo, deixou-o confiante de que o movimento cartista triunfaria em pouco tempo. O programa cartista era político e seus apoiadores vinham, em sua maioria, das classes trabalhadoras. Estudos recentes acerca do cartismo ajudaram a revelar o talento considerável daquela organização e os métodos de propaganda por ela utilizados.19Ler James Epstein e Dorothy Thompson, org., The Chartist Experience (Londres, 1982). Engels sentiu-se no direito de declarar que os trabalhadores já estavam se afirmando efetivamente na política nacional. A partir dessa convicção, foi fácil para ele e, em pouco tempo, para Marx terem fé em uma revolução socialista que estava por vir. A reforma parlamentar veio com o tempo, em estágios espasmódicos, mas o capitalismo sobreviveu e manteve o controle, em parte, ao fazer parceria com a antiga classe dominante. Os proprietários de terras arrendadas poderiam, de certa forma, ter visões mais amplas dos interesses da propriedade do que as janelas estreitas de um escritório de contabilidade permitiam, embora, a longo prazo, as consequências desse isolamento da burguesia fossem graves.

Engels não gostava dos proprietários de terras, e suas críticas às iníquas Game Laws [leis de regulação da caça] mostram a surpresa de um estrangeiro ao se deparar com tais anacronismos feudais: em alguns aspectos, a Inglaterra, orgulhosamente progressista, estava atrasada em relação à maior parte da retrógrada Europa. Mas a principal preocupação dele era com o capitalismo industrial, e sua aversão aos novos gerentes da Grã-Bretanha era sincera e incondicional. Pode-se dizer, com segurança, que o choque traumático do mergulho nas favelas de Manchester foi o que o fez ser socialista para o resto da vida. Como escritor, ele era, assim como Marx, um grande estilista, com um dom tanto para a descrição vívida quanto para a sátira. Há passagens em que ele soa como o profeta do Antigo Testamento que Marx fez com que muitos leitores imaginassem; nisso, sua educação calvinista foi um bom aprendizado. A mesma sæva indignatio [indignação selvagem] aparece em uma roupagem mais irônica quando ele aplaude a indiferença fria das moças burguesas em relação ao custo de suas roupas finas para a visão das mulheres pobres que as confeccionam. “É uma coisa linda, a compostura de um burguês inglês”. Engels não costuma mencionar Jane Austen, mas ela escreve na mesma linha a respeito de uma pobre governanta que esgota os próprios olhos para terminar uma costura, à luz de velas, para a mimada prole de sua senhora.20Jane Austen, Sense and Sensibility (1811), cap. 23. O que mais despertou a ira de Engels foi a mistura burguesa de ganância e hipocrisia que ele viu entrar em voga. Antes, os proprietários de fábricas eram mais francos; agora, eles, ou seus porta-vozes liberais, sob a pressão cada vez mais forte dos defensores da legislação fabril, começaram a “cantar a felicidade dos trabalhadores” sob seu domínio e a atribuir essa felicidade à sua “filantropia e abnegação”. A cantilena do assistencialismo é muito mais antiga na história do capitalismo — e, antes dela, do feudalismo — do que em nosso próprio século.

Engels não estava sozinho em sua preocupação com os novos distúrbios da Inglaterra, embora nenhum outro pesquisador compartilhasse seu ponto de vista. “Foi na década de 1840 que os romancistas ingleses se afastaram das cenas tradicionais para confrontar as realidades da vida urbana em uma sociedade industrial.”21David Daiches e John Flower, Literary Landscapes of the British Isles (1979; Harmondsworth, 1981), p. 193. Em Sybil, de 1845, Benjamin Disraeli alardeou seus terríveis presságios de revolta proletária e sua moral de que, se todos os empregadores fossem tão benevolentes quanto o Mr. Trafford com sua fábrica modelo, tudo estaria bem. Em Mary Barton, de 1848, Elizabeth Gaskell pregou a reconciliação e a irmandade entre os ricos e os pobres, assim como Charles Kingsley fez, dois anos mais tarde, em Alton Locke. Em 1854, por meio de Tempos difíceis , Charles Dickens prosseguiu nesse caminho ao criticar os insensíveis proprietários de fábricas de Manchester, seu credo utilitarista e sua destruição da imaginação.

Engels certamente deve ter lido algumas ou todas essas obras em algum momento. Ele pode ter visto os artigos acerca de Manchester encomendados em 1849 e 1850 pelo Morning Chronicle — segundo ele, “o órgão da burguesia por excelência” — e reunidos em um panfleto. O objetivo do organizador daquele panfleto era rebater os abusos feitos nos últimos anos contra o sistema fabril, ataques nos quais “romances tolos ajudaram o que panfletos maldosos e injustos haviam começado”. Mesmo assim, o organizador não pôde evitar admissões prejudiciais que confirmam o testemunho de Engels. As taxas de mortalidade de Manchester eram quase as mais altas do país. Assim como Engels, o organizador discorreu a respeito da “maldição das cidades de algodão — a dosagem de ópio nas crianças para mantê-las dormindo tranquilamente” enquanto suas mães iam trabalhar. “Vários expedientes engenhosos” permitiam que os empregadores contornassem as leis que limitavam as horas de trabalho.22Anônimo, The Cotton Metropolis (1972, Manchester), pp. 2, 12-3, 15, 19. À época, um cidadão de espírito público estava empenhado em explorar as horríveis favelas de Edimburgo e escrever An Inquiry into Destitution, Prostitution and Crime in Edinburgh (Edimburgo, 1851; republicado como Low Life in Victorian Edinburgh, by a Medical Gentleman, Edimburgo, 1980).

Ele terminou elogiando os trabalhadores por suportarem suas dificuldades, em geral, “com maravilhosa e nobre resignação”.23The Cotton Metropolis, p. 32. Nenhuma qualidade poderia ser mais admirável do ponto de vista de um empregador, ou menos admirável do ponto de vista de Engels, que sentia profundamente que nada salvaria as massas de se afundarem na morte moral, exceto o ódio, por mais cego ou irracional que fosse, por seus opressores. A raiva era o único elixir que poderia preservar a essência humana dos operários. Se ele estivesse escrevendo sobre escravos na Jamaica ou no Alabama, poucos hoje discordariam dele; e ele estava longe de ser o único a ver pouca diferença entre a escravidão, a servidão e a condição dos trabalhadores ingleses.

No cartismo, surgia uma forte divisão entre os adeptos do pacifismo e os do uso da força. Engels não entra nesse assunto. Ele aplaude os mineiros de carvão em greve por sua disciplina perante qualquer provocação: infringir a lei significaria ser abatido e derrotado imediatamente. Ele considerava o crime como o estágio mais inicial e elementar da ação das classes trabalhadoras, fútil por si só, mas que ainda continua como parte de um fermento de massa mais amplo, na forma de ataques aos pelegos ou fura-greves [knobsticks or blacklegs], sabotagem por meio de incêndios criminosos ou bombas caseiras. A revolução violenta era o que ele sempre previa, mas não como uma questão de escolha: sua preferência era por um movimento ordeiro e disciplinado, embora não excluísse a força. Seu ano no exército o deixou com um gosto duradouro pela fraseologia militar. Ele falava de trabalhadores “em pé de guerra contra seus empregadores”; as greves eram sua “escola militar”, e sua frequência era prova da proximidade de uma “batalha decisiva”. Para ele, a “guerra social” estava mudando de significado, passando de uma multidão de átomos humanos para um conflito regular de classes.

Sua ideia sobre o que estava por vir ainda não havia sido definida. Ele podia dizer, com aparente pesar, que, graças à recusa burguesa em ver o que estava escrito na parede, “certamente toda a esperança de uma solução pacífica da questão social para a Inglaterra deve ser abandonada”. Se a burguesia não pudesse fazer melhor, deveria “abdicar em favor da classe trabalhadora”. Os proprietários de terras e os agricultores lhe pareciam igualmente obstinados e desatentos ao cataclismo que se aproximava. Ele aceitou a bona fides [boa-fé] de indivíduos das classes mais altas, cuja consciência estava sensibilizada com a situação dos pobres, e parece ter sentido que a simpatia deles poderia amortecer o choque do dia da ira iminente. Ele atribuiu ao grupo conservador que havia começado a se chamar Young England algumas boas intenções, embora não tivesse um programa realista. (Alguns anos mais tarde, no Manifesto comunista, foi mais bruscamente desdenhoso.) Quando seu livro ficou pronto, ele providenciou que um prefácio em inglês, na forma de uma dedicatória às classes trabalhadoras, fosse impresso em separado, de modo que cópias pudessem ser enviadas a políticos e escritores deste país. Afinal de contas, ninguém menos que o comissário de polícia de Barmen era socialista, informou com alegria a Marx.24Out. 1844; Letters of the Young Engels, p. 201. Seria interessante saber quais respostas ele recebeu, se é que recebeu alguma. Um dos destinatários deve ter sido Carlyle, “o inglês meio alemão”, como Engels o chamava, tão frequentemente citado no livro.

A principal esperança de Engels já estava fixada em um rápido amadurecimento das próprias classes trabalhadoras. Uma explosão sangrenta além de qualquer precedente poderia ser evitada, e a mudança poderia ocorrer de maneira menos brutal, concluía ele, se as massas fossem permeadas por ideias socialistas. Ele estava convencido de que o socialismo estava de fato se unindo ao cartismo, e o proletariado estava sendo moldado em uma força inteligente e construtiva: ele estava compreendendo a necessidade de fazer com que as máquinas trabalhassem para os homens, e não os homens para as máquinas e seus poucos proprietários. Mas uma compreensão clara da situação e de como ela poderia ser alterada era essencial. O “socialismo inglês”, ou o credo owenista, era “abstrato demais, metafísico demais” para conquistar mais do que alguns poucos apoiadores das classes trabalhadoras, mesmo que esses representassem seus “elementos mais educados e sólidos”.

O livro é rico em pensamentos socialistas a respeito de muitos assuntos, ainda atuais de uma forma ou de outra. Ele tem muito a dizer sobre a família. Engels pode soar bastante primitivo em relação à imoralidade entre os trabalhadores, com os jovens sendo jogados juntos de forma promíscua nas fábricas. Eles quase não tinham outras satisfações além de sexo e bebida. Mas o resultado, como Engels viu, era muitas vezes a redução de uma mulher à prostituição; e ele se refere mais de uma vez à nova versão do jus primæ noctis [direito da primeira noite] dos tempos feudais, que colocava a garota trabalhadora à disposição do empregador ou do supervisor. Temos evidências da mesma coisa na Escócia, dadas por uma testemunha cuja infância foi passada em uma usina de Dundee,25Anônimo [James Myles (?)], Chapters in the Life of a Dundee Factory Boy: An Autobiography (Dundee, 1887), pp. 14-7, 36-7. e isso é ainda mais verossímil quando lembramos que as mulheres em nossos dias ainda têm de se queixar de assédio sexual no trabalho. Mais uma vez, Engels pode parecer antiquado quando fala que a fábrica está provocando a “dissolução da família”, ou a virando de cabeça para baixo, deixando o marido desempregado em casa com os filhos e a esposa trabalhando fora — uma situação atual e que “degrada, da maneira mais vergonhosa, ambos os sexos”. Mas ele acrescenta uma crítica contundente à família antiga: “os sexos foram colocados em uma posição falsa desde o início”, e se é errado a mulher ter agora a mão do chicote, tem sido igualmente “desumano” o homem ainda ser seu mestre.

Mais tarde, Engels, assim como Marx, se interessou muito pela Irlanda e seus problemas, e até planejou escrever uma história do país. Quando viu os imigrantes irlandeses pela primeira vez, não pôde deixar de os considerar “uma influência muito degradante” para os trabalhadores ingleses. Ele rejeitou várias explicações acerca da condição da Irlanda como unilaterais; a sua própria deve ter lhe parecido inadequada mais tarde. Baseava-se principalmente na superpopulação, levando à subdivisão do solo, e em um caráter nacional dos irlandeses — um fator que tanto Marx quanto Engels sempre levaram a sério —, os comparando ao do tipo latino, displicente, sentimental e pouco prático. Mas ele rejeitou a condenação extravagante de Carlyle e sustentou que uma mistura do “impetuoso temperamento irlandês com o estável, racional e perseverante temperamento inglês” deveria, com o tempo, beneficiar a ambos. Os irlandeses, ele poderia ter acrescentado, eram um elemento “vermelho” [“ginger”] útil nas fileiras cartistas, embora às vezes também fossem um elemento divisor.

A superpopulação se adequava melhor ao pensamento de Thomas Malthus do que ao de Engels e, mais tarde, Marx. Malthus é mencionado várias vezes no livro, mais enfaticamente perto do final, quando Engels escreve sobre a Poor Law de 1834, inspirada nas máximas malthusianas, como o mais severo de todos os ataques aos trabalhadores. Aquela lei tratava a pobreza não em suas causas, mas como a infratora, e os pobres eram encarcerados em workhouses [casas de trabalho] — a de Manchester era uma fortaleza sombria ao norte da “velha igreja”, prestes a se tornar a catedral. Engels e Marx ainda lutariam muito mais com Parson Malthus;26Ler Ronald Meek, Marx and Engels on Malthus (Londres, 1953). os países pobres com governos do tipo mais inteligente, principalmente a China comunista, estão lutando contra ele hoje.

Em nossa época, houve outro influxo de colonos em dificuldades, e muitos dos antigos males do atrito comunitário e do congestionamento urbano voltaram. A procura de emprego na Grã-Bretanha foi acompanhada pela intensificação da concorrência entre as nações. Engels observou que os tecelões de meias das Midlands não conseguiam se defender dos tecelões da Saxônia, mais próximos da fome e ensinados a se submeter a ela como um dever patriótico. Ele não teria ficado surpreso com o espetáculo de hoje, em que os trabalhadores de cada país são exortados a apertar o cinto para permitir que seus empregadores levem a melhor sobre os rivais estrangeiros. Muito do que ele disse sobre a Inglaterra pode ser dito sobre muitos outros países hoje, os mais recentes campos de caça do capitalismo no terceiro mundo, onde ditadores e militares servem de supervisores para os investidores ocidentais.

Engels escreveu que um operador de máquina poderia ser esmagado pela servidão da fábrica, tornando-se uma coisa sem vontade própria, “sujeito às leis da natureza”, como uma substância inanimada. Isso pode parecer excluir qualquer possibilidade de progresso, mas uma parte da personalidade de Engels era a inclinação para equiparar as “leis” da ciência social e física. Para ele, um rápido colapso do capitalismo poderia parecer “tão certo quanto uma demonstração matemática ou mecânica”. Em seus primeiros anos, essa tendência pode ser considerada um legado de sua fé inicial na filosofia hegeliana, ou em uma versão secularizada dela. No prefácio da edição estadunidense do livro, em 1886, ele previu, com muita esperança, uma evolução saudável do movimento trabalhista nos Estados Unidos, com base no fato de que “a evolução histórica tem, como a evolução natural, suas próprias leis imanentes”. Em seus últimos anos, ele estava meditando em um tratado que estenderia a lógica da dialética da história humana para o funcionamento do universo.27Ler o inconcluso Dialectics of Nature, de Engels (Moscou, 1954). O socialismo estava se espalhando naquela época, mas depois de muitos atrasos e falsos começos, o que poderia muito alimentar o desejo de que alguma força irresistível transformasse, a torto e a direito, os homens em socialistas. Talvez alguma frustração semelhante tenha levado Robert Owen, em seus últimos anos, em uma direção oposta, aos caprichos místicos.

Engels deixou Manchester em agosto de 1844. No caminho de volta para casa, já com o direito de ser chamado de um “marxista” adulto, ele se encontrou outra vez com Marx, em Paris. Dessa vez, uma das parcerias mais importantes da história estava começando. Sua mente não se ocupava só com política. “Meu caso de amor chegou a um triste fim”, ele logo escreveu para Marx de casa. “Desculpe-me pelos detalhes tediosos.” Não foi permitido que isso atrasasse seu livro por muito tempo; tampouco outro impedimento, os negócios da família, para os quais, disse ele a Marx na mesma carta, havia sido atraído de volta por um curto período. “Ser comerciante é horrível demais […], e, acima de tudo, é horrível demais permanecer […] um burguês que se opõe ativamente ao proletariado.”28Engels a Marx, 20 jan. 1845; Letters of the Young Engels, p. 212 ss. Seu pai não foi tão inflexível, a ponto de lhe dar uma mesada e o deixar seguir seu próprio caminho. Engels se juntou a Marx, agora em Bruxelas, e, no verão de 1845, o levou em sua primeira visita à Inglaterra, onde passaram seis semanas em Londres e Manchester. Em 1848 e 1849, os dois amigos se engajaram na Revolução Alemã, cuja derrota os levou de volta à Inglaterra, como exilados.

Engels se viu em Manchester mais uma vez, condenado ao comércio do qual havia fugido. Sua renda nos primeiros dez anos foi bastante modesta, como empregado que trabalhava, sobretudo, com a correspondência estrangeira, sob a direção de Godfrey Ermen, chefe da empresa Ermen and Engels. Depois da morte de seu pai, em 1860, ele se tornou acionista e, em 1864, sócio. O escritório e o depósito da empresa ficavam em Deansgate. Ele morou em vários endereços, primeiro na Great Ducie Street, em Strangeways. Mais tarde, na Oxford Road, perto da Royal Infirmary. E, por fim, em uma rua da Stockport Road, em Ardwick, mais distante do centro da cidade, com árvores e campos à vista, em vez do pátio de um pub sob sua sala sombria no escritório da Ermen and Engels.29Ler Mick Jenkins, Frederick Engels in Manchester (Manchester, 1951). Sua posição em Manchester sempre foi desconfortável; havia um abismo entre ele e sua própria classe e as classes trabalhadoras. A filha de Marx, Eleanor, lembrava-se dele como uma figura solitária, com apenas três colaboradores próximos, dois deles alemães.30Reminiscences of Marx and Engels (antologia, Moscou), p. 185., 31Lênin, “Frederick Engels”, 1896., 32Engels, The Housing Question, 1872, pp. 71-2 (Londres, 1936). O isolamento, assim como a aversão a Napoleão III, pode ajudar a explicar seu curioso entusiasmo pelo movimento voluntário da década de 1860, quando se supunha que uma invasão francesa estava próxima; ele se juntou avidamente aos treinamentos e escreveu muito acerca da total desumanidade desse sistema patriótico de união. Gilbert Keith Chesterton33Gilbert Keith Chesterton, The Victorian Age in Literature (ed. rev., 1914), p. 233. poderia estar fazendo eco a Engels quando chamou o cruel capitalismo de “outro nome para o inferno”, e declarou que esse havia deixado só três tipos de ingleses: escravos, tolos e revolucionários. Um século e meio depois de sua publicação, o livro de Engels se destaca como um registro histórico, se não completo; como uma comparação do passado com o presente e um alerta para o futuro; e como um capítulo na formação inicial da mais poderosa tradição intelectual e política que já existiu.

VICTOR KIERNAN nasceu em 4 de setembro de 1913 e estudou na Manchester Grammar School e no Trinity College, em Cambridge. Depois de um período como professor e de outros trabalhos na Índia, ingressou no Departamento de História da Universidade de Edimburgo, onde lecionou até se aposentar em 1977. Suas publicações incluem British Diplomacy in China, 1880-5 (1939, 1970); The Revolution of 1854 in Spanish History (1966); The Lords of Human Kind (1969 etc.); America: The New Imperialism (1978); State and Society in Europe, 1550-1650 (1980); Colonial Empires and Armies, 1815-1960 (1982, 1998); The Duel in European History (1988); um estudo sobre a história social do tabaco (1991); dois estudos sobre Shakespeare (1993, 1996); um sobre Horácio e a Roma de seu tempo (1999); traduções em versos de duas antologias de poesia indiana (urdu); e quatro volumes de ensaios reunidos, históricos ou literários. Morreu em 17 de fevereiro de 2009, aos 95 anos.

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