Barricade bei der Universität am 26ten Mai 1848 in Wien [Barricada na universidade, em 26 de maio de 1848, em Viena], 1848, litografia de F. Werner. (Wikimedia Commons.)
Conferência apresentada em 7 de outubro de 2025 para o curso Formação Histórica e Social
Local: Ed. Eurípedes Simões de Paula, Dep. de História (FFLCH-USP), Sala de Vídeo, 2º andar. Av. Lineu Prestes, 338, Cidade Universitária, São Paulo – SP
Apoio: LF Editora | Revista Crítica Socialista | Cadernos do Movimento Operário | GMarx-USP
Proposta e sumário
☞ Proposta: apresentação da história de Marx e Engels, dos primeiros textos ao Manifesto comunista e o início das Revoluções de 1848-9 na Europa.
- Contexto histórico
 - Marx, primeiros textos na imprensa
 - Debates filosóficos e políticos
 - Crítica à economia política
 - Liga dos Comunistas, Manifesto e Revoluções de 1848-9
 
Fontes e referências
Fontes
MECW. Marx and Engels Collected Works. Londres: Lawrence Wishart, 1975-2004. 50 v.
Referências
CLAUDÍN, Fernando. Marx, Engels e a Revolução de 1848. Trad. de José Paulo Netto. São Paulo: Boitempo, 2025. 400 pp. ISBN 978-65-5717-471-5.
RIAZÁNOV, Davíd. Marx e Engels, uma biografia. Trad. de Vanessa Dias. Pref. à ed. bras. por Iuri Tonelo. Pref. à ed. franc. de 1923 por Davíd Riazánov. Apres. à ed. bras. por Vanessa Dias e André Barbieri. Nota sobre a ed. da International Publishers de 1927 por Caio Rosa. Esboço biográfico de Davíd Riazánov por Matías Maiello. Anexo de Liev Trótski. São Paulo: Iskra, 2022. 288 pp. ISBN 978-65-89174-03-5.
O livro de Riazánov, Marx e Engels, uma biografia, publicado em 1923, consiste em nove conferências apresentadas em 1922 na Academia Socialista, em Moscou. O público na ocasião era formado por militantes, sindicalistas e pesquisadores interessados em história, filosofia, economia política e outras áreas do conhecimento.
Em Marx, Engels e a Revolução de 1848, publicado em 1975, Fernando Claudín contrasta com as teses dos historiadores soviéticos acerca da Liga dos Comunistas e da direção de Marx e Engels, sobretudo com Davíd Riazánov e E. Kandel.
Entre as críticas de Claudín está a tentativa dos historiadores soviéticos em apresentarem o partido bolchevique como herdeiro, nos critérios de estrutura, hierarquia e visão política, da Liga. Para eles, essa herança direta entre a Liga e o partido bolchevique daria legitimidade à organização leninista, construindo uma “teoria do partido” desde Marx e Engels. Claudín demonstra que, para Marx e Engels, a noção de “partido” não se limita a uma organização ou a uma arregimentação, e que sua funcionalidade está relacionada à conjuntura, não sendo, portanto, algo indispensável para a ação política das classes trabalhadoras. Claudín apresenta exemplos em que Marx e Engels se referem ao partido proletário, ao partido burguês e ao partido da ordem não se referindo a uma organização ou sigla específica. Entre a documentação levantada para sustentar sua tese, Claudín (pt. 3, cap. 17, p. 285) cita carta de Marx a Ferdinand Freiligrath, de 29 de fevereiro de 1860 (MECW, v. 41, pp. 81-2):
Gostaria de salientar, d’abord, que, após a Liga ter sido dissolvida a meu pedido em novembro de 1852, nunca mais pertenci a qualquer sociedade, seja secreta ou pública; que o partido, portanto, nesse sentido totalmente efêmero, deixou de existir para mim há oito anos. As palestras a respeito de economia política que dei, depois do aparecimento de meu livro (no outono de 1859), a alguns trabalhadores selecionados, entre os quais também estavam ex-membros da Liga, não tinham nada em comum com uma sociedade exclusiva — menos ainda do que, digamos, as palestras de Herr Gerstenberg para o Schiller Committee. Você deve se lembrar que os líderes do bastante ramificado Communist Club em Nova York (entre eles Albrecht Komp, manager do General Bank, 44 Exchange Place, Nova York) me enviaram uma carta, que passou por suas mãos, e na qual foi sugerido que eu reorganizasse a antiga Liga. Passou-se um ano inteiro antes que eu respondesse, e então foi no sentido de que desde 1852 não estava associado a nenhuma associação e estava firmemente convencido de que meus estudos teóricos eram de maior utilidade para a classe trabalhadora do que minha intromissão em associações que já haviam tido seu dia no continente. Por causa desta “inatividade” fui subsequentemente atacado repetida e amargamente, se não nominalmente, pelo menos por inferência, no londrino Neue Zeit, de Herr Scherzer. […] Desde 1852, então, não sei nada de “partido” no sentido implícito em sua carta. Enquanto você é um poeta, eu sou um crítico e para mim as experiências de 1849-52 foram mais que suficientes. A Liga, como a Société des saisons em Paris e outras cem sociedades, foi simplesmente um episódio na história de um partido que está brotando naturalmente em toda parte do solo da sociedade moderna.
Claudín também enfatiza o caráter democrático e democratizante do comunismo de Marx e Engels. Por exemplo, em muitas passagens, ele apresenta citações em que Marx e Engels relacionam a democratização da sociedade como momentos necessários do avanço do socialismo e do comunismo.
Motivo pelo qual é importante a leitura paralela entre Riazánov e Claudín:
☞ Claudín apresenta contradições na atuação política e nos textos de Marx e Engels, não se debruçando diante dos textos deles como um fiel diante da Bíblia.
☞ Riazánov e Claudín são céticos a respeito do ensaio de Engels sobre a história da Liga: “On the History of the Communist League” [“Sobre a história da Liga dos Comunistas”], de 1885 (MECW, v. 26, pp. 312-30). Ambos apontam que, talvez por lapsos de memória, Engels não tenha reconstruído adequadamente a história da Liga, o que faz com que seu texto entre em contradição com as fontes.
															Capas dos livros MECW, v. 1, Marx e Engels, uma biografia, de Davíd Riazánov, e Marx e Engels e a revolução de 1848, de Fernando Claudín.
															
															Origens do marxismo
1. Contexto histórico
Revolução Industrial
O novo mundo industrial
☞ A Revolução Industrial como formadora de um novo ser social, de novos valores e de novas ambições.
☞ Nova urbanização; as grandes cidades industriais.
☞ Novo campo; proletarização dos trabalhadores rurais e produção rural capitalista.
☞ Nova relação entre sociedade e natureza.
☞ Mundo pequeno: novos meios de comunicação e transportes diminuem as distâncias e criam a sensação de que o planeta teria encolhido ⇄ mundo gigante: novas possibilidades e potenciais de vida e desenvolvimento social (Eric Hobsbawm, A era das revoluções, 1789-1848).
☞ A ciência e a técnica a serviço do capital: visto que está sob domínio alienante do capital, o desenvolvimento científico e técnico não libertam a humanidade, mas geram novos modos de dominação e controle social, sobretudo das classes trabalhadoras.
O A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Engels, publicado em 1845, é um dos primeiros textos em que a concepção materialista de história é posta em prática e à prova — The proof of the pudding is in the eating. A obra se mantém viva e ainda tem o que ensinar a respeito do mundo industrial da primeira metade do século XIX e aos jovens pesquisadores a respeito de como investigar e apresentar uma pesquisa de caráter social, de modo objetivo, mas não neutro, isso é, que tenha lado, o lado dos trabalhadores.
☞ Tese de Engels: a emergência do proletariado como sujeito político independente e com demandas políticas e econômicas próprias — o partido proletário. Observa-se também a existência da imprensa operária, de caráter democrata e socialista, como o cartista The Northern Star, porta-voz das classes trabalhadoras inglesas.
Eventos históricos importantes para a história das classes trabalhadoras:
☞ Greve Geral de 1842, ou Plug Plot Riots [Conspiração da Vela de Ignição], de julho a setembro 1842. Rejeição, pelo parlamento, da segunda petição dos cartistas, em maio de 1842. Considerada a primeira greve geral da história contemporânea.
☞ Revoltas dos Tecelões de Lyon, ou Révolte des Canuts (1831, 1834 e 1848). Tecelões da indústria da seda.
Revolução Francesa
O novo mundo político Expansão da cidadania e do Código Civil durante a Era Napoleônica, um caminho sem volta.
☞ Sufrágio universal.
☞ Igualdade política; fim das castas, dos estamentos.
☞ Soberania e poder popular; o Estado é criado pela vontade popular, a fonte do poder político; O Estado deve prestar contas à população e deve estar a serviço da população (contrato social).
															Terrível massacre em Lyon
Repressão à Segunda Revolta dos Tecelões de Lyon, em abril de 1834. (Bibliothèque nationale de France/Wikimedia Commons.)
E a Alemanha?
As novas ideias — Iluminismo, economia política e Revolução Francesa — entram na Alemanha por meio do Geist e da baïonnette.
A indústria e as luzes transformam e iluminam a Alemanha
☞ Unificação nacional.
☞ Democratização da política e da imprensa.
☞ Projetos de instituições liberais análogas às francesas (republicanismo) e inglesas (monarquia constitucional).
☞ Combate à teocracia e aos resquícios feudais.
☞ Censuras e perseguições; emigrados alemães na França e na Inglaterra.
															Europa, 1848-9
Mapa histórico com os principais centros revolucionários, movimentos importantes de tropas reacionárias, Estados com abdicações e conflitos nacionais. (Wikimedia Commons.)
2. Marx, primeiros textos na imprensa
☞ Marx estuda Direito e Filosofia nas universidades de Bonn e Berlim. Em 1841, apresenta tese de doutorado na Universidade de Jena.
☞ Não encontra perspectiva de seguir carreira universitária.
☞ Entra no ramo do jornalismo e do debate público.
☞ Trabalha como jornalista e editor.
☞ Dialoga com os jovens hegelianos. Pensamento radical (ateísmo, comunismo).
☞ Democrata e liberal.
Marx e o Gazeta Renana
☞ Liberalismo e democratização da imprensa e da política.
☞ Questão social se resolverá por meio da liberdade (liberalismo econômico e político).
☞ Dialoga com a comunidade alemã de intelectuais, artesãos e operários, muitos deles exilados na Bélgica, França, Inglaterra, Suíça e Estados Unidos.
Debates sobre a liberdade de imprensa (MECW, v. 1, pp. 132-81)
Ensaio redigido em abril de 1842 e publicado em série no Gazeta Renana em maio de 1842. Assinado: Por um renano [Von einem Rheinländer].
O ensaio foi a primeira contribuição de Marx para o Gazeta Renana, jornal em que Marx iniciou sua atividade jornalística. Em outubro de 1842, tornou-se um dos editores do jornal. Por seu conteúdo e abordagem diante de problemas políticos vitais, o ensaio impulsionou o jornal, fundado pela burguesia renana liberal, a iniciar uma transição para posições revolucionário-democráticas.
A partir das atas da Assembleia da Província do Reno, Marx critica as leis de censura da Prússia e defende a liberdade de imprensa como pilar da democracia. Bem recebido em círculos progressistas na Alemanha, o ensaio foi aclamado por sua profundidade e vigor, e estabeleceu Marx como uma voz radical na imprensa alemã.
Há no texto elementos de idealismo em relação ao Estado e seu papel como mediador entre o universal e o particular e de representante dos interesses universais diante do particular.
Debates sobre a lei de roubo de lenha (MECW, v. 1, pp. 224-63)
Ensaio redigido em outubro de 1842 e publicado em série no Gazeta Renana entre outubro e novembro de 1842. Assinado: Por um renano [Von einem Rheinländer].
Nessa série de ensaios, Marx tratou, pela primeira vez, do tema dos interesses materiais das classes pobres, advogando em defesa delas.
A redação e as reflexões a respeito desse tema inspirou Marx a estudar economia política, como ele próprio reconheceu em prefácio ao Para a crítica à economia política, de 1859.
O ensaio trata dos debates ocorridos na Assembleia da Província do Reno acerca dos “roubos de madeira”, a divisão da propriedade rural e a privatização forçada e violenta das terras comunais na Renânia, que, a partir de então, seriam propriedades privadas de latifundiários, os quais as explorariam de modo capitalista — processo análogo aos cercamentos, ou enclosures, ocorridos na Inglaterra, sobretudo do século XVI em diante.
Marx critica a Assembleia renana por equiparar a coleta de madeira caída ao roubo de madeira viva. A coleta de madeira era prática tradicional dos pobres e indispensável fonte de energia para aquecimento e alimentação. Ao legislarem em causa própria, os parlamentares renanos (latifundiários) estavam criminalizando a pobreza.
Esses ensaios são importantes para a evolução política de Marx porque, até aquele momento, ele advogava posições idealistas a respeito do Estado e da inter-relação entre atividade material e espiritual, tratando o Estado prussiano meramente como um desvio da natureza essencial do Estado. Ao mesmo tempo, o tema o impulsionou a se interessar por compreender e expressar os interesses das classes populares. Marx começou a captar as contradições sociais no desenvolvimento da sociedade, significando os primeiros passos para definir a estrutura de classes da sociedade alemã; o papel da nobreza como suporte social do Estado prussiano; os interesses particulares e mesquinhos das burguesias; e a proletarização dos camponeses.
															Cabeçalho do Gazeta Renana [Rheinische Zeitung]. (MECW, v. 1.)
3. Debates filosóficos e políticos
Pensar e mudar o mundo
Tese onze sobre Feuerbach
¶ “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”.
Filosofia clássica alemã
Kant. A paz perpétua, 1795; princípios inspiradores para ONU e União Europeia ↝ Fichte. Discursos à nação alemã, 1808; divulgação do nacionalismo alemão no contexto das Guerras de Libertação; inspirado no nacionalismo de Herder ↝ Hegel. Filósofo “oficial” da Alemanha; reitor da Universidade de Berlim ↝ Feuerbach. Materialismo ⇢ ateísmo
“Hino/ode à alegria”, de Schiller (A educação estética do homem, 1794), musicada por Beethoven na Nona Sinfonia. Humanismo idealista, a humanidade como uma irmandade.
Iluminismo francês e britânico
Materialismo ↯ ciências naturais (astronomia) ↝ história das sociedades humanas (determinismo social) ↝ lutas de classes.
Concepção materialista de história
Formulação da concepção materialista de história a partir do debate filosófico (político, teológico) com intelectuais radicais alemães.
Debate intelectual alemão
☞ Limite local ⇄ Universal
☞ Jovens hegelianos (comunismo filosófico)
☞ Socialismo Verdadeiro ou Verdadeiros Socialistas (humanismo idealista e valores cristãos) e socialismo de Weitling (artesãos empobrecidos e valores cristãos)
															Manuscrito de Marx com o texto da tese onze sobre Feuerbach. (MECW, v. 5.)
Ideologia alemã e Teses sobre Feuerbach (MECW, v. 5, pp. 3-9, 15-539)
O manuscrito referente ao Ideologia alemã é uma obra conjunta de Marx e Engels, escrita por eles em Bruxelas entre 1845 e 1846.
Marx e Engels estudam, debatem e redigem este trabalho na primavera de 1845.
Entre suas páginas, destaca-se e a primeira exposição da concepção materialista de história.
Naquele mesmo contexto, Marx escreve as onze teses sobre Feuerbach.
No outono de 1845, o projeto tomou a forma de um plano definido para uma obra em dois volumes de crítica aos jovens hegelianos e aos Verdadeiros Socialistas.
Em novembro de 1845, Marx e Engels iniciaram a redação do livro. O plano e a composição da obra foram alterados várias vezes durante o processo. O trabalho principal foi concluído em abril de 1846. Embora eles continuaram a redação do capítulo 1 do volume 1 até meados de julho, o projeto não foi concluído. O rascunho do prefácio do volume 1 foi escrito por Marx em meados de agosto de 1846. O manuscrito referente ao volume 2 foi concluído no início de junho de 1846. A crítica de Engels aos Verdadeiros Socialistas, capítulo final do volume 2, foi escrita entre janeiro e abril de 1847.
Marx e Engels visavam publicar a obra na Alemanha. Todavia, a censura e a relutância dos editores, simpáticos às correntes criticadas, inviabilizaram a consolidação do projeto. À época, algumas passagens foram aproveitadas por Marx e Engels e publicadas na imprensa alemã. Mas a maior parte só veio à luz no século XX.
Após a morte de Engels, o manuscrito ficou com a liderança do Partido Social-Democrata da Alemanha, que publicou menos da metade do material. A primeira edição completa, exceto seis páginas descobertas posteriormente, foi publicada em 1932 pela MEGA, Marx-Engels-Gesamtausgabe, à época, sob a direção de Davíd Riazánov.
Destaques do Ideologia alemã
☞ Diálogo com o idealismo alemão.
☞ Em um mundo dominado por autocracias e teocracias, os filósofos, escritores e artistas alemães se refugiaram na liberdade intelectual (Herbert Marcuse, Razão e revolução).
Só é possível conquistar a libertação real no mundo real e pelo emprego de meios reais.
A libertação é um ato histórico e não um ato de pensamento, e é ocasionada por condições históricas.
☞ Divisão da história em períodos baseados em matérias-primas, modos de produção e processos técnicos: Neolítico e Revolução Agrária ↯ Idade do Cobre ↯ Idade do Bronze ↯ Idade do Ferro…; ou em modos de produção: escravismo ↯ servidão (feudalismo) ↯ trabalho assalariado (capitalismo).
A história da humanidade deve ser estudada e elaborada sempre em conexão com a história da indústria e das trocas.
☞ Oposição a teses que defendem a pré-existência da consciência, independente do mundo material.
A linguagem é a consciência real, prática. […] A linguagem nasce, tal como a consciência, do carecimento, da necessidade de intercâmbio com outros homens. […] A consciência já é um produto social.
☞ Contra as utopias e os projetos utópicos redentores da humanidade.
☞ O movimento comunista é produto das contradições inerentes ao capital, à dinâmica social do capitalismo. É por meio dessas contradições que o comunismo se desenvolverá, e não por meio de projetos sociais alternativos, de fora da dinâmica social.
O comunismo não é, para nós, um estado de coisas que deve ser instaurado, um ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual. As condições desse movimento devem ser julgadas segundo a própria realidade efetiva e resultam dos pressupostos atualmente existentes.
☞ Agência humana × determinismo social (materialismo iluminista e feuerbachiano).
As circunstâncias fazem os homens, assim como os homens fazem as circunstâncias.
A história nada mais é do que o suceder-se de gerações distintas, em que cada uma delas explora os materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores; portanto, por um lado, ela continua a atividade anterior sob condições totalmente alteradas, e, por outro, modifica, com uma atividade completamente diferente, as antigas condições.
☞ Economicismo?
☞ Nos manuscritos do Ideologia alemã, os argumentos de Marx e Engels estão voltados contra o idealismo dos jovens hegelianos. Esse pode ser um dos motivos pelos quais, aqui, eles apresentam teses economicistas, as quais sobrepõem o elemento econômico ao político, cultural, filosófico, religioso…
☞ Em obras posteriores, Engels retoma a esse tema e apresenta versão mais polida da concepção materialista de história: Anti-Dühring (1877-8, 1878) e Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (1886, 1888).
☞ Diálogo com a concepção idealista de história, de Hegel, o qual identifica no conceito de liberdade o fio condutor, o leitmotiv, da história.
Essa concepção {materialista} de história consiste, portanto, em desenvolver o processo real de produção a partir da produção material da vida imediata e em conceber a forma de intercâmbio conectada a esse modo de produção e por ele engendrada, quer dizer, a sociedade civil em seus diferentes estágios, como o fundamento de toda a história, tanto a apresentando em sua ação como Estado quanto explicando a partir dela o conjunto das diferentes criações teóricas e formas da consciência — religião, filosofia, moral etc. etc. — e em seguir o seu processo de nascimento a partir dessas criações, o que então torna possível, naturalmente, que a coisa seja apresentada em sua totalidade (assim como a ação recíproca entre esses diferentes aspectos). Ela não tem necessidade, como na concepção idealista da história, de procurar uma categoria em cada período, mas de permanecer constantemente sobre o solo da história real; não de explicar a práxis partindo da ideia, mas de explicar as formações ideais a partir da práxis material e chegar, com isso, ao resultado de que todas as formas e [todos os] produtos da consciência não podem ser dissolvidos por obra da crítica espiritual, por sua dissolução na “autoconsciência” ou sua transformação em “fantasma”, “espectro”, “visões” etc., mas apenas pela demolição prática das relações sociais reais de onde provêm essas enganações idealistas; não é a crítica, mas a revolução a força motriz da história e também da religião, da filosofia e de toda forma de teoria. Essa concepção mostra que a história não termina por dissolver-se, como “espírito do espírito”, na “autoconsciência”, mas que em cada um dos seus estágios encontra-se um resultado material, uma soma de forças de produção, uma relação historicamente estabelecida com a natureza e que os indivíduos estabelecem uns com os outros; relação que cada geração recebe da geração passada, uma massa de forças produtivas, capitais e circunstâncias que, embora seja, por um lado, modificada pela nova geração, por outro lado prescreve a esta última suas próprias condições de vida e lhe confere um desenvolvimento determinado, um caráter especial.
Toda concepção histórica existente até então ou tem deixado completamente desconsiderada essa base real da história, ou a tem considerado apenas como algo acessório, fora de toda e qualquer conexão com o fluxo histórico. A história deve, por isso, ser sempre escrita segundo um padrão situado fora dela; a produção real da vida aparece como algo pré-histórico, enquanto o elemento histórico aparece como algo separado da vida comum, como algo extra e supraterreno. Com isso, a relação dos homens com a natureza é excluída da história, o que engendra a oposição entre natureza e história. […] Enquanto os franceses e os ingleses se limitam à ilusão política, que se encontra por certo mais próxima da realidade, os alemães se movem no âmbito do “espírito puro” e fazem da ilusão religiosa a força motriz da história. A filosofia hegeliana da história é a última consequência, levada à sua “mais pura expressão”, de toda essa historiografia alemã, para a qual não se trata de interesses reais, nem mesmo políticos, mas apenas de pensamentos puros. […] A dissolução real, prática, dessas fraseologias, o afastamento dessas representações da consciência dos homens, só será realizada, como já dissemos, por circunstâncias modificadas e não por deduções teóricas. Para a massa dos homens, quer dizer, o proletariado, essas representações teóricas não existem; para eles, portanto, elas não necessitam, igualmente, ser dissolvidas, e se essa massa alguma vez teve alguma representação teórica, como, por exemplo, a religião, tais representações já se encontram há muito tempo dissolvidas pelas circunstâncias.
Sugestão: Para o estudo da concepção materialista de história, além das passagens a respeito de Feuerbach em Ideologia alemã, considerar também A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Engels, e o capítulo 24 do livro 1 do Capital (acumulação primitiva), de Marx.
															Página do manuscrito referente ao Ideologia alemã, com texto e desenho de Engels. (MEW, v. 3.)
															Página do manuscrito referente ao Ideologia alemã, com caligrafia de Engels, à esquerda, e hieróglifos de Marx, à direita. (MEW, v. 3.)
4. Crítica à economia política
Marx em Bruxelas
☞ Bélgica como ponto intermediário entre a França e a Alemanha para imigrantes e exilados alemães
☞ Fundação de organizações/sociedades comunistas
☞ Contrabando de literatura “subversiva” – Publicação de textos no Deutsche-Brüsseler-Zeitung [Gazeta Alemã de Bruxelas]
Atividade militante e pesquisa científica
☞ Compreender a história do capital/capitalismo
☞ Transição feudalismo-capitalismo
☞ O estado da indústria, as condições de produção e circulação
☞ As relações de classes
Comitê de Correspondência Comunista
☞ Circulares; literatura política; cartas (caráter teórico e informativo); materiais de propaganda
☞ Objetivo: organização política, unidade teórica, tática e estratégica
☞ Principais sedes: Bruxelas, Londres, Paris
Debates contra lideranças de outros grupos, organizações e tendências socialistas/comunistas
☞ Weitling, Grün e Proudhon
															Cabeçalho do Deutsche-Brüsseler-Zeitung [Gazeta Alemã de Bruxelas]. (MECW, v. 6.)
A miséria da filosofia, Marx versus Proudhon (MECW, v. 6, pp. 105-212)
Escrito em francês e publicado em 1847, o Miséria da filosofia é uma resposta crítica, repleta de chistes, ao Sistema de contradições econômicas, ou Filosofia da miséria, de Pierre-Joseph Proudhon, publicado em 1846. É uma das obras teóricas mais importantes do marxismo e a principal obra de Marx dirigida contra Proudhon, a quem considerava um ideólogo da pequena burguesia.
Marx decidiu criticar as teses econômicas e filosóficas de Proudhon e, ao mesmo tempo, debater os aspectos teóricos e táticos do movimento proletário revolucionário a partir da concepção materialista de história.
A “pré-história” do Miséria da filosofia está em carta de Marx, de 28 de dezembro de 1846, ao russo Pável Ánnenkov, na qual Marx apresentou muitas das ideias que mais tarde formariam seu livro contra Proudhon.
Para a redação do livro, Marx utilizou de anotações feitas entre 1845 e 1847 de obras de vários autores, sobretudo de economistas políticos. Por volta do início de abril de 1847, o trabalho de Marx estava concluído e o manuscrito foi enviado para impressão. Em 15 de junho de 1847, ele escreveu o prefácio. O livro foi publicado em Bruxelas e Paris no início de julho de 1847.
À época, o Miséria da filosofia serviu de fundamentação teórica para o partido operário em formação, a futura Liga dos Comunistas. Enquanto estabelecia contato em nome desse partido, no outono de 1847, com os socialistas e os democratas franceses agrupados em torno do jornal La Réforme, Engels, em conversa com Louis Blanc, um de seus editores, se referiu ao livro de Marx contra Proudhon de “nosso programa”.
Em Miséria da filosofia, Marx critica a metodologia idealista e utópica de Proudhon. Argumenta que suas categorias econômicas são abstrações desconectadas das relações materiais reais da produção capitalista. Estabelece os fundamentos da crítica materialista à economia política e defende que as relações sociais são determinadas pelo desenvolvimento das forças produtivas. Enfatiza a tese das lutas de classes como “motor” da história. Rejeita as soluções reformistas apresentadas por Proudhon e destaca a necessidade da ação revolucionária do proletariado — contrastando com o ceticismo de Proudhon diante dos sindicatos e das greves. O texto também é importante por fazer parte da história da crítica marxiana à economia política, melhor lapidada no Capital.
															Frontispício da primeira edição do Miséria da filosofia. (MECW, v. 6.)
Trabalho assalariado e capital (MECW, v. 6, pp. 415-37; v. 9, pp. 197-228)
No fim de dezembro de 1847, Marx realizou conferências a respeito de economia política na Sociedade dos Trabalhadores Alemães de Bruxelas. Visava publicá-las em forma de panfleto. Contudo, a Revolução Francesa de Fevereiro de 1848 e sua consequente expulsão da Bélgica inviabilizaram o projeto à época.
Algumas das conferências de Marx vieram à luz em abril de 1849, no Nova Gazeta Renana, por meio de uma série de artigos intitulados “Trabalho assalariado e capital”.
Além desses artigos, temos hoje as notas de Marx preparadas para as conferências. As fontes por ele utilizadas foram seus cadernos de 1845-7, no qual continham notas, citações e paráfrases de vários economistas políticos que ele estava estudando à época.
Esses artigos de Marx disseminaram suas ideias a respeito do socialismo científico e da crítica à economia política entre as lideranças políticas das classes trabalhadoras na Alemanha. Por exemplo, em 11 de abril de 1849, o Comitê da Associação dos Trabalhadores de Colônia recomendou que todas as suas filiais iniciassem a leitura e debatessem seus problemas sociais com base nos artigos de Marx a respeito do trabalho assalariado e do capital publicados no Nova Gazeta Renana, e conclamou outras associações de trabalhadores no país a fazer o mesmo.
Em Trabalho assalariado e capital, Marx demonstra que o salário não é uma participação do trabalhador na mercadoria produzida, mas o preço pago pelo capitalista pela força de trabalho, aproximando-se da teoria da mais-valia, ou do mais-valor. Explica que o capital é uma relação social de produção, e não a soma das propriedades e do dinheiro de um capitalista, e que os interesses das burguesias e das classes trabalhadoras são inconciliáveis. Desenvolve a tese da pauperização relativa do trabalhador: o crescimento do capital intensifica a competição entre os assalariados, reduzindo sua participação relativa na riqueza produzida. Argumenta que a sociedade capitalista é histórica e superável.
Trabalho assalariado e capital faz parte da “pré-história” do Capital e apresenta as primeiras formulações da teoria marxiana do valor, ou teoria do valor-trabalho, e da tese de que é o trabalho assalariado que sustenta a dominação burguesa e o capital, isto é, a fonte do capital é a exploração e a apropriação privada do trabalho do proletário.
															Rascunho e primeiro artigo, publicado no Nova Gazeta Renana em 1849, das conferências referentes ao Trabalho assalariado e capital. (MECW, v. 6, 9.)
															5. Liga dos Comunistas, Manifesto e Revoluções de 1848-9
Marx e Engels se aproximam da Liga dos Justos, organização socialista formada por emigrados e exilados alemães. Marx e Engels integram a Liga em janeiro de 1847.
Primeiro congresso, em Londres, verão de 1847.
☞ Engels, delegado de Paris; Wilhelm Wolff, delegado de Bruxelas; Marx não atende.
☞ A organização é rebatizada de Liga dos Comunistas.
☞ Objetivo da Liga: A derrubada da burguesia, o domínio do proletariado, a supressão da velha sociedade burguesa, baseada no antagonismo de classes, e a instauração de uma nova sociedade, sem classes e sem propriedade privada.
☞ Proposta: Elaboração de um programa, de um manifesto.
Segundo congresso, em Londres, novembro e dezembro de 1847.
☞ Engels apresenta novo rascunho do manifesto.
☞ Marx é escolhido para escrever o documento final, redigido no início de fevereiro de 1848.
O Manifesto comunista é publicado na segunda metade de fevereiro de 1848, dias antes da Revolução Francesa de Fevereiro de 1848 (28 de fevereiro). Os primeiros exemplares chegam à Alemanha em maio ou junho de 1848.
Primeiro rascunho do Manifesto, ou Confissão de fé comunista (MECW, v. 6, pp. 96-103)
O primeiro rascunho do documento que viria a ser o Manifesto foi redigido a partir dos debates realizados no primeiro congresso da Liga, realizado em Londres entre 2 e 9 de junho de 1847, marco da reorganização da Liga dos Justos, uma organização de trabalhadores e artesãos alemães fundada em Paris entre 1836 e 1837, e que logo adquiriu caráter internacional, com comunidades na Alemanha, França, Suíça, Inglaterra e Suécia.
Marx e Engels atuaram na Liga visando sua unidade ideológica e organizacional. Os líderes da Liga, Karl Schapper, Joseph Moll e Heinrich Bauer, sediados em Londres desde novembro de 1846, solicitaram a Marx e Engels assistência para o processo de reorganização do partido e para a redação de seu novo programa. Quando Marx e Engels se convenceram de que os líderes da Liga dos Justos estavam dispostos a aceitar os princípios do socialismo científico como programa, aceitaram o convite para ingressar na Liga, no final de janeiro de 1847.
Entre as mudanças mais imediatas da participação de Marx e Engels na Liga estiveram o rebatismo da organização, de Liga dos Justos para Liga dos Comunistas; e a mudança do antigo lema, “Todos os homens são irmãos” para “Trabalhadores de todos os países, uni-vos!”. O rascunho do programa e o dos estatutos da Liga foram aprovados na sessão final do primeiro congresso, em 9 de junho de 1847.
O texto completo do primeiro rascunho do Manifesto, ou Confissão de fé comunista, só se tornou conhecido em 1968, quando o suíço Bert Andréas o encontrou, junto com o rascunho dos estatutos e a circular do primeiro congresso, nos arquivos de Joachim Friedrich Martens, membro da Liga, guardados na Biblioteca Estadual e Universitária de Hamburgo [Staats- und Universitätsbibliothek Hamburg]. A descoberta desses documentos lançaram novas luzes na história da Liga.
Antes, assumia-se que o primeiro congresso só havia decidido elaborar um programa, e que o rascunho havia sido feito pelos líderes londrinos da Liga — Moll, Schapper e Bauer — por volta de junho e agosto de 1847. Todavia, a partir dos novos documentos, hoje se sabe que o rascunho estava pronto em 9 de junho de 1847 e que seu autor foi Engels — o manuscrito encontrado nos arquivos de Martens, exceto algumas palavras inseridas na frase final e as assinaturas do presidente e do secretário do congresso, foi redigido por Engels.
O documento demonstra a grande influência de Engels na política da Liga e na discussão do programa durante o congresso. A maioria das respostas daquela “confissão de fé comunista” seguiam a linha teórica e política formulada por ele e por Marx. No entanto, ao elaborar o programa, Engels considerou que os membros da Liga ainda não haviam se emancipado de ideias utópicas, conforme fica evidente nas seis primeiras perguntas e respostas. Houve, portanto, uma barganha de Engels entre o socialismo científico desenvolvido por ele e Marx e o socialismo utópico dos fundadores da Liga. Quanto ao método expositivo do documento, o “catecismo revolucionário”, tratava-se de um modelo comum na Liga dos Justos e em outras organizações de trabalhadores e artesãos à época.
É provável que Engels visava aprimorar algumas formulações daquele programa durante discussões e revisões posteriores. Depois do primeiro congresso, o rascunho da Confissão de fé comunista foi enviado às outras seções da Liga para debates, acompanhado do rascunho dos estatutos, cujos resultados seriam considerados no segundo congresso, que deveria definir o formato final do manifesto e do estatuto.
A revisão da Confissão de fé comunista, rebatizada de Princípios do comunismo, é do final de outubro de 1847. As coincidências textuais e as referências ao documento anterior indicam que Engels optou por manter algumas respostas.
Segundo rascunho do Manifesto, ou Princípios do comunismo (MECW, v. 6, pp. 341-57)
O Princípios do comunismo foi a etapa seguinte da elaboração do programa da Liga. A nova versão do programa foi redigida por Engels a pedido da seção parisiense da Liga. A decisão foi tomada depois de uma crítica contundente de Engels, durante reunião da seção parisiense, em 22 de outubro de 1847, à versão do programa elaborado por Moses Hess, um dos principais formuladores da corrente Verdadeiros Socialistas e antes próximo de Engels. A versão de Hess foi rejeitada.
A comparação entre o Confissão de fé comunista e o Princípios demonstra que o segundo rascunho de Engels, redigido no final de outubro de 1847, é uma versão revisada do primeiro documento, apresentado no primeiro congresso da Liga. Os seis primeiros pontos do rascunho foram completamente reformulados. Engels havia sentido a necessidade de fazer algumas concessões — a barganha — às visões ainda imaturas, ou utópicas, dos líderes da Liga. Alguns desses pontos foram omitidos nos Princípios, outros substancialmente alterados e reorganizados em ordem diferente. O restante do documento manteve estrutura semelhante, embora os Princípios incluam novas questões: as 5, 6, 10-14, 19, 20 e 24-26.
O Princípios serviu de base para o Manifesto. Em carta de 23-24 de novembro de 1847 a Marx, Engels (MECW, v. 38, pp. 149) mencionou a conveniência de redigir o programa na forma de um manifesto, abandonando a antiga forma de catecismo. Ao escrever o Manifesto, os fundadores do marxismo mantiveram o espírito de muitas das proposições formuladas no Princípios.
Reflita um pouco sobre a Confissão de fé comunista. Acho que faríamos melhor em abandonar a forma catequética e chamar a coisa de Manifesto comunista! Como uma certa quantidade de história precisa ser narrada nela, a forma adotada até agora é bastante inadequada. Levarei comigo a daqui, que eu mesmo fiz; ela está em forma de narrativa simples, mas redigida de forma precária, feita às pressas. Começo perguntando: O que é o comunismo? e então passo diretamente ao proletariado — a história de suas origens, como ele difere dos trabalhadores anteriores, o desenvolvimento da antítese entre o proletariado e a burguesia, as crises, as conclusões. No meio, todo tipo de assunto secundário e, finalmente, a política partidária dos comunistas, visto que deve ser tornada pública. A daqui ainda não foi submetida na íntegra para aprovação, mas, exceto por alguns pontos bastante menores, acho que posso fazê-la ser aprovada de forma que pelo menos não haja nada nela que conflite com nossos pontos de vista.
															Manuscrito de Engels do primeiro rascunho do manifesto da Liga, ou Confissão de fé comunista. (MECW, v. 6.)
Manifesto (MECW, v. 6, pp. 477-519)
O Manifesto comunista é um dos documentos políticos mais importantes do século XIX. Embora a conjuntura em que foi produzido mudou, ele não se limita a ser só uma fonte histórica desconectada do presente. Há nele elementos atuais, em diálogo com o presente, visto que, tanto em 1848 quanto hoje, se vive sob o domínio do capital e da propriedade privada capitalista.
É, provavelmente, a obra pela qual muitos são apresentados ao marxismo. Deve-se, contudo, não se satisfazer com ela, uma vez que não foi a última palavra de Marx e de Engels a respeito de política. Os estudos de Marx e Engels acerca das Revoluções de 1848-9 e da Comuna de Paris de 1871 complementam, atualizam e corrigem teses apresentadas no Manifesto — para não mencionar a importância da crítica à economia política empreendida por Marx, sobretudo dos anos 1850 em diante, na evolução daquilo que hoje se convencionou chamar de marxismo.
O Manifesto foi redigido por Marx como programa da Liga dos Comunistas, conforme determinação do segundo congresso, realizado em Londres, entre 29 de novembro e 8 de dezembro de 1847. O congresso representou a vitória da corrente de Marx e Engels na Liga, que passou a se orientar pela teoria e pelo programa do socialismo científico.
Durante os preparativos do congresso, Marx e Engels decidiram que o documento final deveria ter a forma de um manifesto, e não mais de uma catequese ou de um questionário. A forma de catecismo, usual nas sociedades secretas à época, da Confissão e do Princípios passou a ser considerada inadequada para a exposição da nova visão de mundo revolucionária e para uma apresentação dos objetivos do movimento proletário.
Ainda em Londres e imediatamente depois do congresso, Marx e Engels iniciaram a redação do Manifesto, até aproximadamente 13 de dezembro, quando Marx retornou a Bruxelas. Retomaram o trabalho quatro dias depois, em 17 de dezembro, quando Engels chegou à cidade. Depois da partida de Engels para Paris, no final de dezembro e até seu retorno em 31 de janeiro, Marx trabalhou sozinho no Manifesto.
Pressionado pela Autoridade Central da Liga dos Comunistas, a qual havia lhe fornecido os documentos da organização, Marx trabalhou no Manifesto durante quase todo o mês de janeiro de 1848. Não há consenso quanto à conclusão da redação. Algumas fontes dizem ter sido ainda em janeiro. Outras dizem ter sido no começo de fevereiro. Enfim, o manuscrito foi enviado a Londres para ser impresso na gráfica da Sociedade Educacional de Trabalhadores Alemães, de propriedade do imigrante alemão J. E. Burghard, membro da Liga.
O manuscrito original do Manifesto não sobreviveu. Os únicos materiais existentes de autografia de Marx são um esboço do plano da seção 3, mostrando seus esforços para melhorar a estrutura do Manifesto, e uma página de uma cópia preliminar. O Manifesto foi impresso no final de fevereiro de 1848. A primeira edição foi um panfleto de 23 páginas, com capa verde-escura, sem autoria, uma vez que se tratava de um documento da Liga, e não uma obra pessoal de Marx e Engels. Entre abril e maio de 1848, uma nova edição foi publicada, com 30 páginas, correções de erros tipográficos e pontuação melhorada, versão que serviria de base para edições autorizadas posteriores.
Entre março e julho de 1848, o Manifesto foi serializado no Deutsche Londoner Zeitung [Gazeta Alemã de Londres], periódico dos emigrados alemães. Ainda em 1848, surgiram as edições dinamarquesa, polonesa, publicada em Paris, e a sueca, sob título diferente: A voz do comunismo: declaração do Partido Comunista. As traduções para francês, italiano e espanhol realizadas à época não foram publicadas. A primeira tradução inglesa, de Helen Macfarlane, só foi publicada entre junho e novembro de 1850 no periódico cartista The Red Republican, no qual o editor, Julian Harney, nomeou os autores pela primeira vez.
O crescimento da luta de emancipação proletária nas décadas de 1860 e 1870 impulsionou novas edições do Manifesto. A edição alemã de 1872 trouxe pequenas correções e um prefácio de Marx e Engels com lições da Comuna de Paris de 1871. Esta e as edições alemãs subsequentes, de 1883 e 1890, passaram a se intitular Manifesto comunista, e não mais Manifesto do Partido Comunista.
A primeira edição russa, de 1869, foi traduzida por Mikhaíl Bakúnin, acusada de distorcida. Em 1882, é publicada uma nova tradução, por Geórgi Plekhánov, e para a qual Marx e Engels escreveram prefácio especial.
Depois da morte de Marx, Engels supervisionou diversas edições, escrevendo prefácios para as edições alemã de 1883 e inglesa de 1888, esta traduzida por Samuel Moore, tradutor, com Edward Aveling, do livro 1 do Capital.
A edição de 1890, também preparada por Engels, inclui novo prefácio e notas adicionais.
															Frontispício da primeira edição do Manifesto. (MECW, v. 6.)
Destaques do Manifesto
1. Versão vertiginosa da história
☞ Apresenta-se a história das lutas de classes, das origens do capitalismo, das burguesias e dos proletários, da formação do mercado mundial, cosmopolita, por meio da concepção materialista de história.
☞ Expressionismo literário: “distorção” do real visando expressar a sensação de viver em meio às transformações revolucionárias na indústria, nos transportes, nas comunicações…
☞ Dialética entre o modo de produção ⇄ instituições políticas ⇄ classes sociais ⇄ desenvolvimento técnico e científico.
☞ O capitalismo e as ideologias burguesas desvendam, desmistificam o mundo. O capital dissolve as velhas instituições, revela a verdadeira essência delas.
☞ O capital está em incessante revolução; é um modo de produção que não visa a autorreprodução do mesmo — acumulação e reprodução simples —, mas a acumulação e reprodução ampliada (Capital, livro 1).
☞ Há a sensação de que Marx e Engels estão apresentando um hino/ode às burguesias e ao capital. De algum modo, fazem justo isso ao destacarem o caráter revolucionário do capital e das burguesias na história.
☞ Emergência do proletariado moderno; o primeiro a ter os meios, materiais e ideológicos, para autoemencipação.
A burguesia fornece aos proletários os elementos de sua própria educação política, isto é, as armas contra ela própria.
☞ Dialética ideologia ⇄ classe social. Não haveria determinismo entre ideologia e classe social, mas relação dialética. Tem-se, aqui, um elemento interessante para se refletir a respeito de teses como a do “pobre de direita” e a do “burguês progressista”.
Uma parte dos ideólogos da burguesia passa para o proletariado, especialmente a partir dos ideólogos burgueses que chegam à compreensão teórica do movimento histórico em seu conjunto.
2. Dialética comunistas ⇄ proletários
☞ Os comunistas são a corrente mais radical, política e ideologicamente, do movimento político dos proletários.
☞ Partido comunista ou partido proletário?
☞ O objetivo dos comunistas: organizar política e ideologicamente as classes trabalhadoras; derrubar as burguesias e elevar os proletários ao poder político; abolir a propriedade burguesa, ou privada, e instituir a propriedade comum; abolir as liberdades burguesas (liberdade de comércio) e instituir a liberdade social, comum, humana.
☞ Emancipação das mulheres e igualdade de gêneros.
☞ O comunismo é internacional, “os operários não têm pátria”.
☞ Novo ser social. Seriam os seres humanos aptos ao socialismo e ao comunismo? Não seriam naturalmente capitalistas? Assim como há um ser social sob o capitalismo, não deveria haver também um ser social sob o socialismo e o comunismo?
Ao mudarem as relações de vida dos homens, as suas relações sociais, a sua existência social, mudam também as suas representações, as suas concepções e conceitos.
A revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações tradicionais de propriedade; não admira, portanto, que, no curso de seu desenvolvimento, se rompa, de modo mais radical, com as ideias tradicionais.
Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classes, surge uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos.
¶ News from Nowhere (1890), de William Morris, romance de utopia socialista e ficção científica. A história se passa em um futuro pós-revoluções socialistas, em transição ao comunismo e onde ainda há contradições dos tempos capitalistas e conflitos sociais, ideológicos e éticos. Possivelmente, o romance socialista utópico mais realista já publicado.
3. Cartografia das correntes e das ideologias socialistas
☞ Socialismo feudal: reacionário; antimoderno; antiburguês; atrai aristocratas e clérigos reacionários.
☞ Socialismo pequeno-burguês: utópico; atrai profissionais liberais, pequenos comerciantes arruinados pela concorrência capitalista.
☞ Socialismo filosófico: especulação ociosa; atrai intelectuais, literários.
☞ Socialismo burguês: reformista; filantropo; visa a manutenção do capital sem as contradições desagradáveis, insalubres. É o socialismo dos burgueses que “pegaram a estrada para Damasco”.
☞ Socialismo utópico: Saint-Simon, Fourier, Owen; compreensão dos antagonismos de classes e do capitalismo; arquitetam projetos sociais utópicos; não atribuem às classes trabalhadoras autonomia, ação histórica independente (classe sofredora).
¶ Teoria do socialismo a partir de cima × socialismo a partir de baixo, de Hal Draper.
Essa cartografia é conjuntural, mas pode servir de modelo para o exame da política contemporânea
4. Objetivos dos comunistas
☞ Visam aos interesses objetivos e imediatos das classes trabalhadoras.
☞ Apoiam a democratização da política, da imprensa.
☞ Apoiam movimentos de libertação nacional (contra regimes reacionários e coloniais).
Os comunistas apoiam, em toda parte, qualquer movimento revolucionário contra a ordem social e política existente.
A Primavera dos Povos
A Liga, organizada para atuar na revolução, foi atropelada pela Revolução, e, em pouco tempo, se viu obsoleta perante a sucessão dos eventos e pelo entusiasmo rebelde dos trabalhadores e intelectuais.
Com isso, Marx e Engels mudam de tática e deixam a Liga como que em latência, dedicando-se ao Nova Gazeta Renana, por meio do qual visavam influenciar o movimento operário e a esquerda do partido democrático da Alemanha.
															Barricade dans la rue de Soufflot, à Paris, le 25 juin 1848 [Nas barricadas da Rue Soufflot, Paris, 25 de junho de 1848], c. 1848-9, óleo sobre tela de Horace Vernet, 36 × 46 cm. Berlim, Deutsches Historisches Museum. (Wikimedia Commons.)
Referências
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HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções, 1789-1848. 25. ed. Trad. de Maria Tereza Teixeira e Marcos Penchel. São Paulo: Paz e Terra, 2012. 536 pp. ISBN 978-85-7753-099-1.
MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social. 5. ed. Trad. de Marília Barroso. São Paulo: Paz e Terra, 2004. 379 pp. ISBN 85-219-0750-8.
MCLELLAN, David. Marx before Marxism. Londres: Macmillan, 1970.
MCLELLAN, David. The Young Hegelians and Karl Marx. Londres: Macmillan, 1969.
MECW. Marx and Engels Collected Works. Londres: Lawrence Wishart, 1975-2004. 50 v.
RIAZÁNOV, Davíd. Marx e Engels, uma biografia. Trad. de Vanessa Dias. Pref. à ed. bras. por Iuri Tonelo. Pref. à ed. franc. de 1923 por Davíd Riazánov. Apres. à ed. bras. por Vanessa Dias e André Barbieri. Nota sobre a ed. da International Publishers de 1927 por Caio Rosa. Esboço biográfico de Davíd Riazánov por Matías Maiello. Anexo de Liev Trótski. São Paulo: Iskra, 2022. 288 pp. ISBN 978-65-89174-03-5.
RUSS, Jacqueline. O socialismo utópico. Trad. de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 258 pp. (Universidade Hoje). ISBN 85-336-0029-1.