Lizzie Burns, c. 1865, companheira de Friedrich Engels durante toda a vida.
aidanbeatty.com, 2 fev. 2021.
Tradução de Felipe Cotrim
“Eu nasci em Tipperary, e agora sou uma escrava na Ermen and Engels”
Uma cena inicial reveladora no recente filme histórico de Raoul Peck, The Young Karl Marx [O jovem Karl Marx], retrata o também jovem Friedrich Engels visitando a fábrica de seu pai — que também se chamava Friedrich Engels — em Manchester. Engels pai está tentando identificar o culpado por um recente ato de sabotagem industrial quando uma ardente cailín1Moça, em gaélico irlandês. Pronuncia-se cô-lin. (Nota do Tradutor.) de cabelos vermelhos avança e ostensivamente ataca o industrial rico por sua frieza. Engels pai, em uma linguagem que confirma seu status de capitalista explorador, lembra-a: “Você tem sorte de eu não demitir todos vocês! Reparar máquinas é caro, ao contrário da mão de obra em Manchester”. A militante operária irlandesa então devidamente se identifica: “Meu nome é Mary Burns. Eu nasci em Tipperary, e agora sou uma escrava na Ermen and Engels Spinning Mill em Manchester, Inglaterra”.2Georg Weerth, amigo de Engels, escreveu um poema chamado “Mary”, em que faz referência a Tipperary: “Eu gostaria que o trevo de Tipperary/ Crescesse e sufocasse a rosa da Inglaterra”; sendo esta talvez a origem da ideia de que Mary Burns fosse de Tipperary (Roy Whitfield, Frederick Engels in Manchester: The Search for a Shadow. Salford: Working Class Movement Library, 1988, p. 21). Pouco depois, Engels filho, que já nutria ressentimentos contra seu pai pietista e conservador, procura por Burns nos cortiços irlandeses de Manchester e, a partir daí, tem um affair com ela.3The Young Karl Marx. Direção de Raoul Peck. França; Alemanha; Bélgica: Diaphana Films; Neue Visionen Filmverleih; Cinéart, 2017.
Mary Burns (Hannah Steele) e Friedrich Engels (Stefan Konarske) em O jovem Karl Marx (Raoul Peck, 2017).
A imagem transmitida de Burns é inegavelmente atraente: uma feroz proletária irlandesa, valente diante de seu empregador capitalista. E o encontro dele com Engels filho se torna uma espécie de história de origem para os estudos dele a respeito dos trabalhadores imigrantes irlandeses em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Como era de se esperar, também há alguns problemas graves com essa imagem. Mary Burns não nasceu em Tipperary, nem sequer em qualquer lugar na Irlanda — ela nasceu na Inglaterra. Não há evidências de que ela tenha trabalhado na Ermen and Engels, a fábrica de fiação de algodão na qual Friedrich Engels pai era sócio — e na qual Engels filho trabalharia, com intermitências, por quase trinta anos. Como e quando Engels a conheceu é desconhecido. E não está claro qual, se é que houve alguma, influência política ou intelectual dela sobre o pai do socialismo científico.
Este ensaio recupera, tanto quanto é historiograficamente possível, a história de vida de Mary Burns (1821-63) e de sua irmã mais nova, Lydia “Lizzie” Burns (1827-78), a qual também teve um romance com Friedrich Engels e se casou com ele pouco antes de morrer. A história das mulheres, como a das classes trabalhadoras e das minorias raciais, é sempre atormentada pelo que Edward Palmer Thompson chamou de “a enorme condescendência da posteridade”,4Edward Palmer Thompson, The Making of the English Working Class. New York: Vintage, 1966, p. 12. na qual os analfabetos são apagados do registro histórico. No entanto, é raro encontrar mulheres analfabetas tão próximas — e aparentemente tendo um impacto determinante importante — na vida de dois dos homens mais letrados do século XIX. Recorrendo à vasta correspondência de Karl Marx e Engels, além dos censos contemporâneos, este ensaio busca descobrir: quanto podemos realmente saber a respeito dessas duas mulheres? Quão importante foi o papel que elas desempenharam no trabalho político e literário de Engels? E até que ponto suas vidas reais foram encobertas por uma romantização marxista de duas proletárias, operárias e analfabetas?
Antes de Engels
A família Burns aparentemente viveu na área de Deansgate, em Manchester, a partir da década de 1820. A única evidência documental direta relativa à parentagem das irmãs Burns está contida na certidão de casamento de Lydia, de 1878, que nomeia seu pai como Michael Burns, tintureiro. Este é provavelmente o Michael Burns, tintureiro, listado no Manchester Directory de 1829 na 32 Cotton Street, e no Directory de 1832 na 76 Henry Street, em Ancoats.5Whitfield, Frederick Engels in Manchester, op. cit., p. 69. Burns nasceu na Irlanda por volta de 1790 e se casou com Mary Conroy, em Manchester, em 1821. Tiveram quatro filhos, dos quais apenas duas, Mary e Lizzie, sobreviveram até a idade adulta. A família viveu em vários endereços em Deansgate e Mary Conroy faleceu em algum momento depois de 1827. Michael se casou novamente, com Mary Tuomey, em 1835, e eles tiveram três filhos, dos quais apenas um, Thomas, sobreviveu até a idade adulta. Em 1853, Michael e Mary viviam no Workhouse for Sick and Infirm Poor, em New Bridge Street, onde Michael morreu em 1858, sendo então enterrado na igreja católica romana St. Patrick, em Miles Platting. De acordo com o Censo de 1861, Mary ainda estava no Workhouse.6Ibid., pp. 69-70.
Está claro que Mary e Lizzie já não faziam parte da nova família na época do Censo de 1841. É possível que as jovens também tenham abandonado o trabalho na fábrica e as condições de vida miseráveis nas hovels7Habitação precária. (N. T.) da área de Deansgate e tenham se tornado empregadas domésticas nas casas de famílias abastadas. De acordo com os registros do Censo de 1841, uma Mary Burn, de vinte anos de idade, era empregada como criada na casa de George Chadfield, um mestre pintor, em Deansgate; e uma Elizabeth Burns, de quinze anos, atuava como empregada doméstica para uma família chamada Fothergill na Faulkner Street, perto de Piccadilly. “Isto não é, por si só, uma evidência conclusiva, mas, se estas forem as irmãs Burns, então a experiência que ganharam no serviço doméstico as preparou para as suas posições nos anos seguintes, como responsáveis pela casa de Engels”.8Whitfield, Frederick Engels in Manchester, op. cit., p. 22. É interessante refletir que as irmãs Burns foram incorporadas no imaginário marxista como sendo operárias, ignorando-se a possibilidade delas terem sido empregadas domésticas — um modo de trabalho acerca do qual Marx e Engels tinham pouco a dizer.
Roy Whitfield afirma que Mary Burns e Engels se conheceram pouco depois de sua primeira temporada em Manchester, em 1842, e que ela o ajudou nas investigações acerca das condições de habitação e trabalho das classes operárias da cidade — investigações as quais resultaram em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Há pouca evidência direta disso e nenhuma das correspondências de Engels de 1842 a 1844 sobreviveu.9Ibid., pp. 3, 17. A fábrica da Ermen and Engels ficava em Deansgate, logo, é plausível que o casal tenha se conhecido naquele distrito. Eles podem ter frequentado reuniões juntos no Hall of Science de Manchester, fundado por Robert Owen.10Mick Jenkins, Frederick Engels in Manchester. Manchester: Lancashire and Cheshire Communist Party, 1951, pp. 10, 17. Yvonne Kapp diz que Engels conheceu Mary Burns, “uma operária de dezenove anos de idade”, em Eccles, em 1842.11Yvonne Kapp, Eleanor Marx, Vol. 1: Family Life (1855-83). New York: International Publishers, 1972, p. 109. Em 1898, Eleanor Marx, que conheceu Mary pessoalmente, descreveu-a para Karl Kautsky como uma “moça operária de Manchester (irlandesa), sem instrução, embora soubesse ler e escrever um pouco”.12Whitfield, Frederick Engels in Manchester, op. cit., p. 19. Do mesmo modo, a descrição de Edmund Wilson em Rumo à estação Finlândia, de 1941, aparenta ser psicologicamente verdadeira, mesmo que parte dela permaneça não comprovada: “[Engels] tinha um caso de amor com uma moça irlandesa chamada Mary Burns que trabalhava na fábrica da Ermen and Engels e que fora promovida para operar uma nova máquina chamada self-actor. Ela parece ter sido uma mulher com alguma independência de carácter, pois se diz que recusou [a] oferta de [Engels de] a dispensar da necessidade de trabalhar. No entanto, ela permitiu que [Engels] instalasse a ela e à sua irmã numa casinha no subúrbio de Salford, onde as barcaças de carvão e as chaminés de Manchester davam lugar aos bosques e aos campos. Mary Burns era uma feroz patriota irlandesa e alimentou o entusiasmo revolucionário de Engels ao mesmo tempo em que lhe servia de guia pelos abismos infernais da cidade.13Ibid., p. 19.
Além disso, vale a pena considerar o que Burns teria pensado do primeiro livro de Engels. Em uma passagem de Situação ele declara, sem rodeios, que, “na sala de fiação na fábrica de algodão em Manchester na qual eu era empregado, não me lembro de ter visto uma única mulher alta e bem constituída; todas eram baixas, atarracadas e de má formação, decididamente feias no desenvolvimento geral da figura”. Do mesmo modo, o livro emprega vários termos tipicamente preconceituosos a respeito dos irlandeses — deles serem anti-higiénicos, bêbados, preguiçosos e racialmente inferiores —, o que presumivelmente não teria agradado a Mary Burns.14Aidan Beatty, “Marx and Engels, Ireland, and the Racial History of Capitalism”. Journal of Modern History, Chicago, v. 91, n. 4, pp. 815-47, dez. 2019, pp. 817-8.
Tudo isso é explorado de forma imaginativa na peça 1989 de Frank McGuinness, Mary and Lizzie, que reconstrói ambas as mulheres. No final da peça, Lizzie prevê com precisão: “Você será lembrada, porque você amou a terra… Eu serei lembrada por uma linha na sua vida. Friedrich Engels viveu com duas mulheres irlandesas, Mary e Lizzie Burns. Isso diz pouco. Eles sabem pouco”. No entanto, Lizzie também relata o papel importante que ela e sua irmã tiveram na vida de Engels: “Anos atrás, neste país, dizem que duas mulheres conheceram um homem e foram passear por Manchester. As mulheres deram ao homem passagem segura entre os pobres perigosos… Elas lhe mostraram os pobres e lhe mostraram seu pai e mostraram sua raça e a si mesmas a ele”. Em outra cena, Jenny Westphalen, esposa de Marx, questiona a decência sexual das irmãs Burns antes de ler algumas das passagens mais abertamente anti-irlandesas de Situação para as irmãs: “Devo dizer-lhes o que ele disse… Ele nomeou a sua raça… Vocês acham que ele as ama?”.15Frank McGuinness, Plays Two. Londres: Faber and Faber, 2002, pp. 53, 64, 74.
Embora não tenhamos evidências diretas de como Mary Burns e Friedrich Engels se conheceram, eles certamente já estavam num relacionamento em 1845, quando viajaram juntos a Bruxelas.16Whitfield, Frederick Engels in Manchester, op. cit., pp. 23-4. Em carta, de abril de 1846, para seu colega comunista, Emil Blank, Engels se referiu a Mary eufemisticamente como “minha esposa”.17Friedrich Engels a Emil Blank, 3 abr. 1846. In: MECW. Marx and Engels Collected Works. Londres: Lawrence Wishart, 1975-2004, v. 38. Eles nunca foram formalmente casados. Uma carta de janeiro de 1848 parece ser o primeiro exemplo registrado de Engels a mencionando a Marx, embora seja claro, por meio do contexto, que Marx já a conhecia — o contexto específico é uma acusação de Sibylle Hess, esposa do comunista e protossionista Moses Hess, de que Engels a teria agredido sexualmente.18Friedrich Engels a Karl Marx, 14 jan. 1848. In: MECW, v. 38. E certamente Marx sabia de Burns já em março de 1846.19Jenny Marx a Karl Marx, 24 mar. 1846. In: MECW, v. 38.
Freddie e Mary
Em maio de 1854, Engels e Mary Burns já viviam juntos. Isso aparentemente causou algum escândalo entre os filisteus de Manchester, acerca dos quais ele se queixou a Marx e por causa dos quais ele alugou aposentos adicionais. Mas isso parece ter sido só para manter as aparências, visto que Engels continuou a viver com Burns.20Friedrich Engels a Karl Marx, 1 maio 1854. In: MECW, v. 39. Em artigo para o Manchester Guardian de 10 de outubro de 1934, Moses Baritz, “figura conhecida nos círculos políticos e musicais de Manchester daqueles anos”, identificou vários endereços nos quais Engels viveu em Manchester: 70 Great Ducie Street, Strangeways; 6 Thorncliffe Grove, Oxford Road — onde Mary Burns vivia; e 252 Hyde Road, Gorton, onde tanto Mary quanto Lizzie também viveram e onde Mary Burns morreu, em janeiro de 1863.21Whitfield, Frederick Engels in Manchester, op. cit., p. 6. As casas que ele alugava ficavam frequentemente em áreas recém-construídas de Manchester, onde havia um menor senso de comunidade e, portanto, menos hipótese do seu relacionamento com Mary Burns ser descoberto.22Ibid., pp. 33, 35-6.
Quando Marx morreu, Engels purgou a correspondência recolhida de ambos de uma grande quantidade de cartas que o mencionavam — a ele, Engels. As suas cartas sobreviventes de 1853 a 1863 contêm atualmente 403 cartas de Marx, mas apenas 185 de Engels, sugerindo que Engels destruiu mais de duzentas das cartas que havia escrito a Marx. “Parece claro que o propósito de Engels era remover todas as referências à sua vida pessoal com Mary Burns e aos métodos que empregara para tentar disfarçar a sua vida dupla durante aqueles anos.”23Ibid., p. 7.
Em 1856, Engels visitou a Irlanda com Mary Burns, fazendo um percurso circular: de Dublin a Galway, para sul até Kerry e voltando para Dublin.24Beatty, “Marx and Engels, Ireland, and the Racial History of Capitalism”, op. cit., pp. 815-6. Engels também usava Mary como uma destinatária supostamente segura para a sua correspondência. Em 1851, ele incentivava Marx a colocar qualquer carta politicamente incriminatória “sob selo com Mary”, caso a sua casa fosse revistada pelas autoridades.25Karl Marx a Friedrich Engels, 16 jun. 1851. In: MECW, v. 38. Marx terminou uma carta de maio de 1862 enviando saudações à “Mrs. Bortman e irmã”, uma referência a Engels estar em Hyde Road, Manchester, sob o nome falso de Frederick Boardman, com Mary Burns como Mary Boardman e, presumivelmente, Lizzie Burns também usando um nome falso.26Karl Marx a Friedrich Engels, 27 maio 1862. In: MECW, v. 41. Uma crise econômica causada pela Guerra Civil dos Estados Unidos forçou Engels a economizar em seus custos de vida: “Agora vivo com Mary quase o tempo todo, para gastar o mínimo de dinheiro possível”.27Friedrich Engels a Karl Marx, 28 fev. 1862. In: MECW, v. 41. Mary Boardman e a sua irmã Elizabeth Byrne estão listadas no censo de 1861 na 7 Rial Street; provavelmente são as irmãs Burns. Engels estava listado no mesmo censo como vivendo a meia milha de distância, em 6 Thorncliffe Grove.28Whitfield, Frederick Engels in Manchester, op. cit., p. 35.
Mary Burns morreu em 1863, aparentemente de um problema de saúde de longa data. Ela permanece uma incógnita. Não há imagens conhecidas dela e nem sequer sabemos onde foi enterrada.
Uma calamidade é uma distração para outra calamidade
A morte de Mary Burns quase foi o motivo de uma ruptura na longa colaboração de Engels com Marx. Escrevendo para o Mouro, em 7 de janeiro de 1863, Engels informou-lhe que “Mary está morta. Na noite passada, ela foi para a cama cedo e, quando Lizzie queria deitar-se, pouco antes da meia-noite, descobriu que ela já havia morrido. De modo bastante súbito. Parada cardíaca ou derrame. Só me contaram de manhã. Na segunda-feira à noite ela ainda estava bem. Simplesmente não consigo transmitir o que sinto. A pobre moça me amou com todo o seu coração”.29Friedrich Engels a Karl Marx, 7 jan. 1863. In: MECW, v. 41.
Presumivelmente, Engels mantinha, à época, uma residência separada de Mary. A resposta de Marx foi, no mínimo, pouco solidária. A notícia da morte de Burns “me surpreendeu não menos do que me consternou”. Marx comparou a morte de Burns e a dor de Engels com os seus próprios problemas financeiros: “Só o diabo sabe porque é que só o azar persegue toda a gente no nosso círculo agora”; e detalhou as suas contas com o açougueiro, o padeiro e com as escolas de suas filhas. “É terrivelmente egoísta da minha parte lhe contar estas horreurs neste momento. Mas é um remédio homeopático. Uma calamidade é uma distração para outra calamidade”.30Karl Marx a Friedrich Engels, 8 jan. 1863. In: MECW, v. 41. A inferência óbvia era que Marx estava pedindo dinheiro a seu patrono.
Em carta lacônica, cinco dias depois — uma pausa incomum em sua correspondência quase diária com Marx —, Engels se mostrou irritado com a visão “glacial” que Marx tinha demonstrado. Até “conhecidos filisteus” tinham mostrado mais simpatia de que seu velho amigo. Ele sugeriu, de modo franco, que Marx contraísse um empréstimo para cobrir as despesas.31Friedrich Engels a Karl Marx, 13 jan. 1863. In: MECW, v. 41. Marx poderia estar refletindo a frieza de sua esposa, Jenny Marx, que uma vez se referiu a Mary Burns como Lady Macbeth e claramente a via como uma presença indesejada às suas vidas.32Jenny Marx a Karl Marx, 24 mar. 1846. In: MECW, v. 38.
Em 24 de janeiro, depois de um hiato de onze dias em sua correspondência, Marx escreveu uma longa carta para se desculpar por sua “falta de coração”, embora a maior parte da carta ainda fosse ocupada com os seus próprios problemas financeiros e um plano para se declarar insolvente. Ele agora afirmava que a morte de Mary Burns o tinha afetado “como se o meu ente mais querido tivesse morrido”.33Karl Marx a Friedrich Engels, 24 jan. 1863. In: MECW, v. 41. Dois dias depois, Engels escreveu para o agradecer por sua desculpa “sincera”: “Você mesmo percebeu agora o tipo de impressão que a sua penúltima carta me causou. Não se pode viver com uma mulher durante anos a fio sem ser terrivelmente afetado pela morte dela. Senti como se, com ela, estivesse a enterrar o último vestígio de minha juventude. Quando a sua carta chegou, ela ainda não tinha sido enterrada. Essa carta, digo-lhe, me obcecou durante uma semana inteira. Não consegui tirá-la da minha cabeça. Não importa. A sua última carta a compensou e estou feliz por, ao perder Mary, não ter também perdido o meu mais velho e melhor amigo”.34Friedrich Engels a Karl Marx, 26 jan. 1863. In: MECW, v. 41.
A questão foi resolvida e, mais importante, Engels incluiu detalhes específicos a respeito de como em breve obteria fundos para Marx. Pouco mais de um ano depois, em abril de 1864, Marx incluía os seus “cumprimentos mais afetuosos” a Lizzie Burns em suas cartas, sugerindo que o relacionamento dela com Engels estava agora estabelecido.35Karl Marx a Friedrich Engels, 19 abr. 1864. In: MECW, v. 41. Uma carta daquele mesmo ano termina com “saudações à Madame Liz”, sugerindo ainda mais intimidade e ludicidade; Karl Marx a Friedrich Engels, 7 set. 1864. In: MECW, v. 41.
“Minha esposa é uma irlandesa revolucionária”
Esboço de Lizzie Burns, depois de 4 de maio de 1869, por Friedrich Engels. (Reprodução de MECW. Marx and Engels Collected Works. Londres: Lawrence Wishart, 1975-2004, v. 43, p. 145.)
Temos mais detalhes a respeito de Lizzie, incluindo uma fotografia e um esboço feito por Engels. Marx terminou uma carta de setembro de 1864 com seus “cumprimentos à Madame Liz” e a chamou de “amiga ‘irlandesa’” de Engels, sugerindo maior familiaridade, afeição e brincadeira.36Karl Marx a Friedrich Engels, 7 set. 1864; 13 fev. 1866. In: MECW, v. 41, 42. Talvez Marx estivesse ansioso para evitar uma repetição do quase cisma de janeiro de 1863. Por outro lado, seria ir longe demais interpretar um significado velado na mensagem de encerramento de Marx em uma carta de agosto de 1865: “Saúde, de toda a família, para ti, e, de mim, para a Mrs. Lizzie”.37Karl Marx a Friedrich Engels, 5 ago. 1865. In: MECW, v. 42. Estaria ainda claro que a família Marx, se não o próprio Marx, ainda olhava de lado para as esposas irlandesas de Engels?
Durante quase a totalidade de seus relacionamentos, Engels e Lizzie Burns nunca foram formalmente casados, embora ele se referisse a ela como esposa, descrevendo-a ao ativista socialista Ludwig Kugelmann como “minha querida esposa”.38Friedrich Engels a Ludwig Kugelmann, 31 jul. 1868. In: MECW, v. 43. Discutindo-a em 1870 com Natalie Liebknecht, esposa do fundador do SDP, Wilhelm Liebknecht, e mãe do espartaquista Karl Liebknecht, Engels disse simplesmente: “Minha esposa é uma irlandesa revolucionária”.39Friedrich Engels a Natalie Liebknecht, 19 dez. 1870. In: MECW, v. 44. Ela realmente parece ter sido uma nacionalista ardente, influenciando a filha de Marx, Eleanor, a qual ficou conhecida entre sua família como A Pobre Nação Negligenciada, tamanhas eram suas simpatias fenianas.40Karl Marx a Friedrich Engels, 4 ago. 1868; 14 dez. 1868. In: MECW, v. 43. Eleanor também assinava cartas para Burns com o apelido “Eleanor, F.S. [Fenian Sister]”.41Kapp, Eleanor Marx, Vol. 1, op. cit., p. 89. Lizzie conhecia várias canções irlandesas de sua juventude, que reaprendeu depois que Jenny Marx, outra das filhas de Marx, deu-lhe uma cópia de Irish Melodies, de Thomas Moore, em agosto de 1869.42Friedrich Engels a Jenny Marx (filha), 8 ago. 1869. In: MECW, v. 43. Engels, Lizzie e Eleanor Marx visitaram a Irlanda juntos em setembro de 1869, passando por Dublin, Wicklow, Cork e Killarney. Engels descreveu a viagem como um sucesso e notou sarcasticamente que Eleanor Marx e Lizzie Burns “voltaram ainda hiberniores [mais irlandesas] do que quando partiram”.43Friedrich Engels a Karl Marx, 27 set. 1869. In: MECW, v. 43. Quando vários membros do círculo de Marx e Engels publicaram artigos pró-fenianos, Lizzie ficou aparentemente “grata” e “absolutamente entusiasmada”. Friedrich Engels a Karl Marx, 13 mar. 1870; 1 maio 1870. In: MECW, v. 43.[/mfn] Houve “comemorações” na casa Engels-Burns em dezembro de 1870, quando fenianos condenados receberam anistia.44Friedrich Engels a Natalie Liebknecht, 19 dez. 1870. In: MECW, v. 44.
O incentivo de Marx à adesão de Lizzie à Associação Internacional dos Trabalhadores indica para onde estavam as simpatias políticas dela.45Karl Marx a Friedrich Engels, 25 jan. 1865. In: MECW, v. 42. Por outro lado, certos indícios de condescendência em relação a ela podem ser ouvidos nas cartas de Engels e Marx. Engels zombou de sua pronúncia de Henri Rochefort, um jornalista de esquerda francês, como “Rushforth”,46Friedrich Engels a Karl Marx, 11 fev. 1870. In: MECW, v. 43. e desdenhosamente chamou sua amiga, Mrs. Chorlton, de “a gorda”.47Friedrich Engels a Karl Marx, 28 out. 1868. In: MECW, v. 43. Quando o communard francês Eugène Dupont chegou a Manchester em julho de 1870, Marx procurou contratar Lizzie como empregada, talvez indicando como Marx continuava a ver Lizzie Burns, tanto em termos de seu gênero quanto de sua origem social.48Karl Marx a Friedrich Engels, 5 jul. 1870. In: MECW, v. 43. A resposta de Engels foi que “uma empregada doméstica confiável é muito difícil de arranjar às pressas”, mas “Lizzie não pode sair de casa por causa do joelho, que, como resultado de sua inquietação e impaciência, não está melhorando tão rapidamente quanto deveria”.49Friedrich Engels a Karl Marx, 6 jul. 1870. In: MECW, v. 43.
Em novembro de 1868, Lizzie Burns viajou a Lincolnshire para se encontrar com amigos, e transformou a ocasião em missão de averiguação político-antropológica, relatando a Engels acerca do sistema de gangue usado pelos trabalhadores rurais “patriarcais” de lá.50Friedrich Engels a Karl Marx, 10 nov. 1868. In: MECW, v. 43. Ela acompanhou Engels em muitas viagens, visitando Hamburgo, Schleswig e Copenhague no verão de 1867, embora tenha sofrido de enjoo em alto-mar.51Friedrich Engels a Karl Marx, 26 jun. 1867; 11 ago. 1867. In: MECW, v. 42. Este enjoo pode também ter sido algo mais sério. Em novembro de 1868, Engels estava escrevendo a Marx acerca da saúde dela, o que logo se tornaria um tema regular. A princípio, ele descreveu isso como “congestões na cabeça”, mas, no início do ano seguinte, ele foi mais específico: “Lizzie tem uma gastrite catarral violenta, que tratei por muito tempo, e, mal isso passa, ela sofre, como resultado de uma lesão no dedo do pé, uma inflamação dos vasos linfáticos no pé e na perna, que poderia ter se tornado muito desagradável, mas agora está quase curada”.52Friedrich Engels a Karl Marx, 19 jan. 1869. In: MECW, v. 43. Ela se recuperou no final de janeiro de 1869, mas, em março, ela estava acamada novamente. Engels descreveu o estado dela como “bronquite”, “um resfriado forte”, “pleurisia”, “exsudação no pulmão direito” e “catarro nos pulmões”.53Friedrich Engels a Karl Marx, 25 jan. 1869; 15 mar. 1869; 18 mar. 1869; 21 mar. 1869. In: MECW, v. 43. Ela estava se recuperando lentamente e “com uma dieta fortalecedora”.54Friedrich Engels to Karl Marx, 2 abr. 1869. In: MECW, v. 43.
Em 1870, Engels e Burns se mudaram de Manchester para Londres. A razão imediata foi o término do tão odiado período de Engels na fábrica de sua família. Algumas tensões, devido a causas não nomeadas, entre Burns e sua família também desempenharam um papel: “Minha mudança para Londres, no final do verão, agora está decidida. Lizzie me disse que gostaria de sair de Manchester, quanto mais cedo melhor — ela teve algumas brigas com parentes e está farta de toda a situação aqui”.55Friedrich Engels to Karl Marx, 22 fev. 1870. In: MECW, v. 43. É plausível que sua coabitação não casada com um comunista alemão tenha irritado à sua família. Depois da chegada a Londres, residiram em 122 Regent’s Park Road — então, como agora, um local de alto padrão — e Engels continuou sua prática de usar Burns como destinatária segura para sua correspondência politicamente sensível.56Friedrich Engels to Carlo Carieor, 28 jul. 1871. In: MECW, v. 44. “Se você escrever para a Miss Burns, não precisa de um envelope interno, nem de fazer qualquer menção ao meu nome. Eu mesmo abro tudo”.57Friedrich Engels to Theodor Cuno, 24 jan. 1872. In: MECW, v. 44. Ele continuou a se referir a ela como sua esposa e, em uma carta de 1872, até começou a chamá-la de “Mrs. Engels”.58Friedrich Engels to Hermann Jung, 1 out. 1872. In: MECW, v. 44.
A mudança para Londres pode ter ajudado na saúde a curto prazo de Lizzie, mas, em março de 1877, sua saúde voltou a piorar, necessitando de viagens de recuperação para Brighton.59Friedrich Engels to Friedrich Lessner, 4 mar. 1877; Friedrich Engels to Karl Marx, 6 mar. 1877; Friedrich Engels to Wilhelm Liebknecht, 2 jul. 1877. In: MECW, v. 45. Uma viagem a Ramsgate, em julho de 1877, não teve o efeito positivo desejado e seu apetite permaneceu fraco. Engels estava “começando a ficar seriamente alarmado”.60Friedrich Engels to Karl Marx, 15 jul. 1877; 19 jul. 1877. In: MECW, v. 45. Ela teve uma “crise séria” em sua saúde em 22 de julho, depois da qual se recuperou lentamente.61Friedrich Engels to Karl Marx, 24 jul. 1877. In: MECW, v. 45. Seus persistentes problemas de saúde impediram Engels de completar uma tradução francesa do Manifesto comunista.62Karl Marx to Friedrich Adolph Sorge, 19 out. 1877. In: MECW, v. 45. Em 12 de setembro de 1878, à 1h30 da manhã, ela “morreu pacificamente após uma longa doença”.63Friedrich Engels a Rudolf Engels, 12 set. 1878. In: MECW, v. 45. Ela e Engels haviam se casado legalmente na noite anterior, conforme os ritos da Igreja Anglicana, pelo reverendo W. B. Galloway, da igreja St. Mark, perto de sua casa, na 122 Regent’s Park Road.64Kapp, Eleanor Marx, Vol. 1, op. cit., p. 191. Burns foi enterrada no cemitério católico St. Mary, em Kensal Green, Londres. Sua lápide foi marcada com uma cruz celta e o seguinte epitáfio: “Em memória de Lydia, esposa de Frederick Engels, nascida em 6 de agosto de 1827, falecida em 12 de setembro de 1878. R.I.P.”. A lápide, no estado atual, está em condições precárias, mas parece ter tido sua inscrição recentemente retocada.
Print do catálogo de pessoas notáveis e de mapa do cemitério católico St. Mary, com destaque para Lizzie e para a localização da lápide dela.
Pumps Burns
Depois da morte de Lizzie, Engels continuou a ter contacto com a sobrinha, Mary Ellen Burns (1860-1928), mais conhecida por Pumps, por razões não claras. Pumps era filha do meio-irmão das irmãs Burns, Thomas, que era dono de uma peixaria em Manchester.65Ibid., p. 186. O apoio de Engels parece ter sido tanto por dever quanto por afeição, embora, antes da morte de Lizzie Burns, Engels se tenha referido a Pumps em termos que sugerissem tê-la adotado informalmente.66Numa carta de novembro de 1875 ao seu irmão Rudolf, Engels refere-se a Lizzie como “minha esposa” e a Mary Ellen como “nossa pequena” (Friedrich Engels a Rudolf Engels, 9 nov. 1875. In: MECW, v. 45). No ano seguinte, Engels se referiu a Mary Ellen como “nossa Pumps” (Friedrich Engels a Philipp Pauli, 25 abr. 1876. In: MECW, v. 45.)
Há referências nas cartas de Marx de 1881 e 1882 que falam da sua irritabilidade em relação a Pumps. Ela flertava com vários visitantes da casa de Engels, levando um socialista emigrado, Leo Hartmann, a pedir a permissão de Engels para se casar com ela em junho de 1881, sem perceber que ela o paquerava visando enciumar a outro visitante, Karl Kautsky.67Karl Marx to Jenny Longuet [Jenny Marx], 6 jun. 1881. In: MECW, v. 46. Por volta de 1882, ela se casou com um contador inapto, Percy Rosher, tornando-se Mary Ellen Rosher e dando à luz a uma bebê chamada Lilian.68Karl Marx to Friedrich Engels, 4 abr. 1882. In: MECW, v. 46. Marx diria mais tarde à sua filha, Laura Lafargue, que considerava o bebê ter um intelecto mais vivo do que o da mãe.69Karl Marx to Laura Lafargue [Laura Marx], 9 out. 1882. In: MECW, v. 46. O segundo filho dela, Charles, nasceu no início de 1885 e foi batizado na Igreja Anglicana.70London Metropolitan Archives, Board of Guardian Records, 1834-1906, Church of England Parish Registers, 1754-1906, P81/MRY/003. Engels dava regularmente subsídios para os negócios azarados de Percy Rosher e, em seu testamento, legou ao casal a avultada quantia de 2,3 mil libras.71Friedrich Engels a Laura Lafargue, 28 jul. 1894; Friedrich Engels a Ludwig Schorlemmer, 3 jan. 1895; Will and Codicil of Frederick Engels, 29 jul. 1893; Engels’ Letter to the Executors of his Will, 14 nov. 1894. In: MECW, v. 50.
Com a morte de Engels, em 1895, e, talvez, com o fim dos auxílios financeiros dele, eles zarparam de Liverpool para Boston, via Queenstown (atual Cobh), Irlanda, em maio de 1898, estabelecendo-se em Norfolk, Massachusetts. Pumps morreu lá em 1928.72National Archives, Washington, DC; Series Title: Passenger Lists of Vessels Arriving at Boston, Massachusetts, 1891-1943; NAI Number: 4319742; Record Group Title: Records of the Immigration and Naturalization Service, 1787-2004; O obituário de Mary Ellen, ou Pumps, está listado no Boston Globe de 12 outubro de 1928.
Por que isso importa?
As irmãs Burns podem ser situadas na história mais ampla da Diáspora Irlandesa, na qual as mulheres frequentemente conquistavam novas liberdades, negadas a elas “em casa”, enquanto continuavam a enfrentar os estereótipos de gênero associados às mulheres irlandesas. Evidentemente, Mary e Lizzie eram livres-pensadoras e dispostas a forjar seus próprios estilos de vida, os quais certamente não se alinhavam com os códigos e os padrões de decoro social irlandês ou britânico da Era Vitoriana.
O que sabemos a respeito da política de ambas as irmãs também é revelador. Em cartas de Engels ou Marx, elas são sempre assumidas como simpatizantes fenianas. Todavia, essas descrições parecem carecer de conteúdo ou tridimensionalidade: fenian era talvez uma identidade imposta a elas, em vez de um descritor positivo de pontos de vista complexos. Podemos assumir que ambas as irmãs eram comunistas, ou, no mínimo, que se sentiam suficientemente confortáveis com o comunismo para ter relacionamentos de longa duração com um comunista estrangeiro e comprometido com a causa.
No entanto, há a evidência instigante do casamento e do enterro de Lizzie Burns. Certas formalidades e normas sociais “tradicionais” claramente importavam para ela, que claramente preferiu morrer como uma esposa do que como uma “mulher vivendo em pecado”. E um catolicismo de influência irlandesa permaneceu como parte integrante de tudo isso. As vidas de ambas as irmãs ilustram todas as contradições e as complexidades que existiam logo abaixo da superfície do simples rótulo de “irlandesa” no século XIX.
AIDAN BEATTY é historiador, nascido em Galway, Irlanda. Estudou no Trinity College Dublin e na Universidade de Chicago. Seu foco de pesquisa é em ideologias políticas. Interessa-se pela história da Irlanda e da Grã-Bretanha, história judaica e israelita, masculinidade, nacionalismo, raça, e capitalismo e socialismo. Leciona História na Universidade Carnegie Mellon e preside a American Conference for Irish Studies. Lecionou na Universidade de Pittsburgh, na Universidade Estadual Wayne e na Universidade de Chicago. Realizou pós-doutorado na Universidade Concordia, em Montreal, e no Trinity College Dublin, e obteve bolsas de pesquisa de curta duração na Truman Presidential Library e nos American Jewish Archives. Publicou os livros Masculinity and Power in Irish Nationalism (2016), Melhor Livro do Ano em História pela American Conference for Irish Studies; Private Property and the Fear of Social Chaos (Manchester University Press, 2023); The Party is Always Right: The Untold Story of Gerry Healy and British Trotskyism (Pluto, 2024). Atualmente, escreve livro a respeito do capitalismo e do nacionalismo irlandês e, com Brian Hanley, edita uma coletânea acerca de história global da extrema-direita irlandesa, a ser publicada pela New York University Press na série Glucksman Irish Diaspora. Já escreveu ensaios para o Irish Times, Jacobin, The Washington Post, Journal of Modern History, Irish Historical Studies e Journal of Jewish Studies. Foi editor convidado do Journal of World-Systems Research, Radical History Review e Irish Studies Review. É coeditor de Irish Questions and Jewish Questions (Syracuse University Press, 2018).