“Hegel e a economia política”, de Raymond Plant — tradução

New Left Review, Londres, v. 1, n. 103, pp. 79-92, maio/jun. 1977.
ISBN 0028-6060

Tradução de Felipe Cotrim

Parte 1

Em A formação do pensamento econômico de Karl Marx, Ernest Mandel escreve: “Em sua juventude, Hegel havia sido profundamente afetado pelos estudos econômicos, em particular pela obra de Adam Smith; Marx via o sistema hegeliano como uma verdadeira filosofia do trabalho [labour]”.1Londres, 1971, p. 11. Ele prossegue citando o conhecido estudo De L’Aliénation à la jouissance, de Pierre Naville, da seguinte forma: “Quando ele [Marx] leu a Fenomenologia do espírito, a Filosofia do direito e até mesmo a Ciência da lógica, Marx descobriu assim não só Hegel, mas, por meio dele, ele estava ciente daquela parte da economia política clássica que foi assimilada e traduzida em termos filosóficos na obra de Hegel; de modo que Marx não poderia ter feito sua crítica sistemática da sociedade civil e do Estado de acordo com Hegel se não tivesse encontrado, nos escritos deste último, certos elementos ainda vivos, como a teoria das necessidades, a teoria da apropriação, ou a análise da divisão do trabalho”.2Paris, 1957, p. 11. Meu objetivo neste ensaio é tentar resgatar a visão de Hegel a respeito da economia política em seus próprios termos, como um prólogo para entender o que Marx pode ou não ter derivado deles para seus próprios escritos econômicos. Tentarei indicar o desenvolvimento dos pontos de vista de Hegel acerca da economia política e sua posição madura a respeito dessas questões. Nesta discussão, a Ciência da lógica não vai aparecer, pois, por mais que Marx tenha sido influenciado por ela no desenvolvimento de sua própria análise do capitalismo, e por mais que Lênin tenha julgado que ela fosse necessária para entender o Capital,3Ler Lênin, Collected Works, Vol. 38 (Londres; Moscou, 1961), p. 180. ela própria não articula nenhuma das visões específicas de Hegel acerca da economia política — embora forneça o fundo filosófico em lógica e ontologia na qual se situa a sua visão a respeito da economia política e de outras atividades humanas.4No início deste ensaio, é justo dizer o quanto estou em dívida com as pesquisas de Paul Chamley nessa área, particularmente seus ensaios “Les Origines de la pensée économique de Hegel” e “La Doctrine économique et la conception hégelienne du travail”, publicados no Hegel Studien (Bonn, 1965), seus livros Économie politique chez Steuart et Hegel (Paris, 1963) e Documents relatifs à James Steuart (Paris, 1965). Também para com o Studien zu Hegels Rechtsphilosophie (Frankfurt am Main, 1969), de Manfred Riedel.

Os ideais de Hegel

Em um livro recente sobre Hegel, argumentei que o pensamento dele era dominado por dois ideais inter-relacionados: a restauração da plenitude e integridade da personalidade humana; e a reestruturação da sociedade em uma base mais harmoniosa e recíproca, restaurando um sentido de comunidade.5Hegel, Londres, 1973. Uma influência crucial na formação desses ideais foi um quadro romantizado e idealizado da Grécia Antiga, em particular da pólis ateniense. Naquela sociedade, assim se acreditava, um sentido real de comunidade havia sido alcançado. As práticas e as instituições sociais, como a religião, a moralidade e a política, estavam todas estreitamente entrelaçadas. O cidadão individual era capaz de desenvolver plenamente sua personalidade e era capaz de participar pessoalmente em todas essas atividades sociais entrelaçadas — uma integridade da personalidade que havia sido negada ao homem moderno. Para muitos, e para Hegel em particular nos seus primeiros anos, a Grécia foi o modelo; e mesmo quando o seu entusiasmo por ela se evaporou um pouco, ele ainda extrapolou da cultura política grega uma convicção política profunda e persistente a respeito da necessidade da sociedade reconquistar algum sentido da harmonia da Grécia — embora de uma forma modificada e contemporânea — e de recuperar algo desse sentido de integridade humana que havia sido uma parte tão dominante da cultura grega.

Enquanto Hegel foi dominado por esses ideais durante o período inicial de seus escritos acerca desses temas em Tübingen, de 1789 a 1793, ele não parece ter estado particularmente interessado em explorar a base material e econômica que permitiu que aquele tipo de sociedade florescesse no mundo antigo, ou as atuais condições materiais de vida que tornaram difícil, ou impossível, alcançar aquela forma de vida comunitária no mundo moderno. Pelo contrário, durante o período em questão, Hegel parece ter visto a religião como a chave para a estrutura unificada da vida grega e as mudanças religiosas como sendo a causa da estrutura banal da sociedade moderna. Na opinião de Hegel, a religião popular grega havia sido uma instituição unificadora. Ela apelava para todos os poderes da mente humana, da cabeça ao coração, enquanto a religião moderna europeia havia se tornado demasiado racionalista e teológica, negligenciando a necessidade da religião para nutrir as emoções.6Nohl (org.) (Tübingen, 1907), p. 9, 16. Ademais, foi uma força poderosa para a integração da sociedade em geral. Todas as práticas de uma sociedade tinham uma dimensão religiosa e, desse modo, havia relações estreitas entre elas mediadas por esse vínculo comunitário. Em sua função social, a religião popular grega era muito diferente do cristianismo moderno, cujas práticas se tornaram um rito reservado para dias especiais da semana, envolvendo cerimônias especializadas e formas litúrgicas, com o resultado de que ela se tornou cada vez mais deslocada da vida corrente da comunidade. A reconquista de um sentido de comunidade, e com ela a regeneração da vida pessoal, é assim vista por Hegel, naquele momento, muito em termos de redescobrir algo, como a religião popular grega, em grande parte por meio de uma remodelação fundamental das crenças cristãs e, em particular, por meio de uma rigorosa tentativa de desmistificar os evangelhos, a fim de excluir todos os elementos de transcendência e positividade.7Ler o ensaio “Das Leben Jesu”, de Hegel, in Nohl, op. cit., p. 75 ss. Há, portanto, muito pouco nos fragmentos de Tübingen para sugerir que Hegel tivesse um sério interesse em explorar as formas de relações econômicas dentro das quais novas formas de comunidade poderiam crescer ou em descobrir as condições materiais de vida dentro das quais a comunidade grega havia florescido.

Os escritos de Hegel durante seu período como tutor particular em Berna envolveram uma mudança significativa em suas opiniões e interesses. O cristianismo era visto então perante um pano de fundo das mudanças sociais e políticas da era romana posterior. Longe de parecer ter um papel determinante em modelar a vida e a experiência social, era agora visto como a projeção de um mal-estar social que havia se instalado. Hegel argumentou que o poder militar de Roma havia levado à formação de uma elite governante, a qual usava o poder militar e as riquezas derivadas da conquista para se manter no poder. Na opinião de Hegel, essa forma de dominação econômica e política levou a consequências sociais e políticas desastrosas. O indivíduo começou a se sentir afastado do Estado: “A imagem do Estado como produto das suas próprias energias desapareceu da alma do cidadão. Toda a atividade e todos os propósitos tinham agora uma influência em algo que a atividade individual não era mais para o bem do todo ou do ideal”.8Ibid., p. 223. Essas mudanças socioeconômicas tiveram um efeito muito profundo na vida religiosa. A religião popular não podia se adaptar a essa situação transformada; ela se baseava e espelhava um sistema de reciprocidade e integração. Com a quebra dessa integração, a religião popular teve que desaparecer. O cristianismo, com sua ênfase na privacidade do indivíduo e sua relação pessoal com Deus, que transcendeu a ordem social, preencheu a lacuna na vida social deixada pelo declínio da autoridade da religião popular.

Steuart e a revalorização da história

Esse movimento em direção a uma abordagem mais material da análise social se tornou muito mais pronunciado depois da mudança de Hegel para Frankfurt, quando, sob a influência de sua leitura das obras econômicas de James Steuart, ele começou a refletir muito mais sistematicamente acerca da base material e econômica das estruturas sociais e das formas culturais.9Hegel leu a Investigação, de Steuart, e fez um comentário não mais existente sobre ele entre 19 de fevereiro e 16 de março de 1799. A principal fonte desta informação é: Rosenkranz, Hegels Leben (Berlim, 1844), p. 86. Hegel derivou três ideias principais da sua leitura da Investigação sobre os princípios da economia política, de Steuart. Primeiro, ele desenvolveu o início de uma filosofia da história, a qual lhe permitiu assumir uma atitude muito mais positiva em relação ao desenvolvimento da sociedade moderna. Segundo, ele chegou à ideia de que o desenvolvimento da sociedade comercial leva a um aumento da autonomia humana e da liberdade pessoal, mas, ao mesmo tempo, a sociedade comercial lança as suas próprias formas específicas de integração e os seus próprios grupos comunitários de apoio. Finalmente, da teoria do estadista de Steuart, Hegel derivou uma teoria distinta a respeito do papel do Estado em relação à sociedade comercial. Como resultado de suas pesquisas sobre economia política, ele gradualmente trabalhou seu caminho para ver na vida econômica da sociedade moderna o desenvolvimento de novas formas de integração e comunidade apropriadas para o mundo moderno. Esses temas são claramente perceptíveis em seu ensaio de Frankfurt: O espírito do cristianismo e o seu destino.10Nohl, op. cit., p. 243.

Em sua Investigação, Steuart havia postulado um processo tríplice de desenvolvimento na história, desde a nômade pastoral, passando pela sociedade agrária até à moderna, caracterizada pela economia de troca. Ele interpreta a mudança de uma para a outra como resultado da necessidade de aumentar a oferta de alimentos, como resultado do crescimento populacional causado pelo domínio do impulso sexual na vida humana. Steuart também correlaciona com essas formações econômicas distintas tipos particulares de estruturas sociais com diferentes conjuntos de valores sociais.11James Steuart, An Inquiry into the Principles of Political Economy, Vol. 1 (Andrew Skinner [org.], Londres, 1966), p. 59. Enquanto os homens não tiverem consciência de que a oferta de alimentos pode ser aumentada pelo trabalho humano, eles dependem inteiramente da generosidade da natureza — a consumindo e passando adiante. Nessa sociedade pastoral e pré-agrícola, os homens não trabalham, mas vivem no ócio e gozam de um sentido de liberdade natural. Esse tipo de sistema social não poderia durar muito, na opinião de Steuart, devido ao limite populacional por ele fixado e porque a vida só poderia ser mantida no nível da subsistência. A pressão da população incentiva o trabalho em uma tentativa de aumentar a oferta de alimentos. Isso marca a transição para a economia agrária. O efeito da agricultura é que cada agricultor pode produzir mais alimentos do que ele próprio necessita e o excedente permite que a população aumente. Entretanto, as diferenças naturais de força física e habilidade significam que diferentes níveis de excedentes são alcançados e aqueles que são capazes de produzir mais acabam por se tornar os mestres daqueles que produzem menos. Uma economia agrária introduz o trabalho, mas o trabalho introduz a estratificação.

A economia de troca é um avanço sobre o sistema agrário a partir do qual se desenvolve, pois substitui a compulsão pela indução. Se os desejos se multiplicam acima do nível das necessidades físicas, então, uma vez desenvolvido o gosto pelo que Steuart chama de “luxos”, o homem tem um incentivo para produzir um excedente por meio do seu trabalho, por meio do qual pode adquirir outros bens, luxos, que vão além do nível de subsistência. Ao substituir a restrição da necessidade física como motivação do trabalho pela indução do consumo de bens de luxo, a economia de troca desenvolve a liberdade. Não só isso, mas a economia de troca une os homens em relações de dependência funcional. Um grupo de homens, os agricultores, se concentra na produção de um excedente de alimentos; outro grupo, de mãos livres, em um excedente de bens de luxo; e cada grupo troca com o outro. Assim, a sociedade é dividida em dois grupos mutuamente dependentes, tendo seus desejos reconhecidos; e a economia de troca produz um sistema de dependência mútua, bem como o desenvolvimento de um sentido de liberdade pessoal. Como argumenta Skinner: “Os membros da sociedade comercial estão ligados por um ciclo de atividades e funções, a criação e as despesas de rendimentos; a produção e o consumo de mercadorias”.12Ibid., p. 88. O desenvolvimento de uma economia de troca moderna com seus diferentes grupos que produzem diferentes tipos de bens que são trocados no mercado é, portanto, visto por Steuart como um desenvolvimento progressivo racional. Como diz Chamley: “L’Inquiry est avant tout une théorie de l’évolution” [“A Investigação é, antes de mais nada, uma teoria da evolução”].13Économie politique chez Steuart et Hegel, op. cit., p. 59.

Essa tipologia de mudança e desenvolvimento social está implícita na discussão de Hegel a respeito da história judaica em O espírito do cristianismo e seu destino. No ensaio, Hegel descreve o desenvolvimento da história judaica como “der Übergang vom Hirtenleben zum Staate” [a transição da sociedade pastoral para um estado politicamente ordenado].14Nohl, op. cit., p. 370. Isso é discutido de modo mais completo na passagem que começa com “Zu Abrahams Zeiten”, que não foi publicada in Nohl. A respeito desses manuscritos, ler G. Schuler, “Zur Chronologie von Hegels Jugendschriften” (Hegel Studien, 1963). Para Hegel, Abraão é a figura crucial da história judaica, pois foi o progenitor do povo judeu e, ao mesmo tempo, tentou reverter a tendência progressista da história. Abraão deixou uma sociedade urbana, por mais primitiva que fosse, em Ur, dos caldeus, e reverteu para um tipo de existência nômade, tentando se libertar dos laços sociais. Ao longo das suas perambulações, em sua tentativa de reafirmar os valores de uma sociedade pastoral — em particular, a independência pessoal —, Abraão desprezou os laços sociais: “Ele lutou contra o seu destino, que lhe teria oferecido uma vida comunitária sedentária com outros”.15Nohl, op. cit., p. 246. Uma vida sedentária, que naturalmente envolve a ideia de trabalho e laços sociais, é vista por Hegel como fazendo parte do “destino” do homem moderno. Em certo sentido, seria possível dizer que a história se vingou de Abraão quando, no tempo de Jacó, a fome mostrou que uma simples existência nômade não poderia se sustentar. Jacó e seus filhos foram forçados a comprar grãos do Egito, que tinha um sistema agrário altamente desenvolvido. Nesse ponto da história judaica, Hegel argumenta: “Jacó finalmente sucumbiu ao destino contra o qual Abraão e até então ele próprio também haviam lutado, ou seja, a posse de um lugar de residência permanente e apego a uma nação. O espírito que os conduziu para fora daquela escravidão e depois os organizou em uma nação independente funciona e amadurece a partir desse ponto em mais situações do que aquelas em que ela emergiu”.16Ibid., p. 245.

O desenvolvimento da vida urbana, do trabalho, da dependência mútua e do Estado são assim vistos por Hegel como parte da tendência progressiva da história. Abraão buscou a independência e, como Steuart havia argumentado, a independência — um sistema de liberdade natural — é característica da sociedade pré-agrícola, que é precisamente o tipo de sociedade que Abraão buscou. Entretanto, embora Abraão possa ter sido independente, no sentido de divorciado dos laços sociais, ele não era livre, na visão de Hegel, apenas por causa da pressão da necessidade física e, mais importante, por causa da ausência de trabalho: “Com os judeus, o estado de independência era um estado de total passividade e perversidade. Porque sua independência lhes garantiu apenas comida e bebida, uma existência indigente, seguiu que, com essa independência, com esse pouco, tudo se perdeu ou ficou comprometido. Não sobrava vida para a qual eles pudessem desfrutar. Essa existência animal não era compatível com a forma mais bela de vida que a liberdade lhes teria dado”.17Ibid., p. 253.

Essa é uma passagem muito importante para ver as sementes da teoria do trabalho que Hegel desenvolveria em Jena durante os anos seguintes. Ele relacionou o tipo de vida que Abraão tinha com a vida animal porque, como mais tarde argumentou explicitamente, um animal com necessidade de alimento simplesmente consome passivamente um objeto que o confronta. O homem, porém, chega a um sentimento de autoconsciência e liberdade não só consumindo o que já está presente à mão, mas transformando-o por meio do trabalho, impondo-lhe a sua vontade. Ao fazê-lo, ele vem a conhecer mais a respeito do mundo dos objetos que o confronta e, simultaneamente, utiliza esse conhecimento para humanizar o mundo objetivo. Trabalho, autoconsciência e liberdade andam juntas na mente de Hegel; ao mesmo tempo, a transformação dos objetos naturais pelo trabalho aumenta a gama de objetos do desejo humano. Por meio do trabalho, o homem se desenvolve para além de uma existência indigente, ligada como que à pressão da subsistência. Abraão, que não trabalhou, não era livre, embora pudesse ter sido independente, o que teve consequências muito graves para a sua concepção de mundo. Por não se sentir livre como agente consciente de si mesmo, formou uma visão de Deus e de seu próprio relacionamento com Deus que o lançou no papel de escravo de um ser onipotente,18Ibid., p. 246. o senhor eterno do universo. Porque ele não trabalhou e transformou o mundo natural à sua vontade e assim o humanizou, ele considerava o mundo natural como estranho.19“Ele era um estranho na terra, um estranho para o solo e para os homens”. Ibid., p. 246. O papel do trabalho é crucial; inaugura a história humana, o registro da transformação do homem em seu ambiente, distingue o homem do animal e a evolução das formas meramente naturais.

A partir daquele momento, Hegel começou a evocar muito menos a Grécia e a homogeneidade da cultura grega e das relações pessoais. Essas comunidades eram, como argumenta Colletti, coesas, mas confinadas;20Marxism and Hegel (Londres, 1973), cap. 12. confinadas porque não conheciam o trabalho livre, particularmente no caso de Atenas, que era o principal objeto da admiração de Hegel. Em Atenas, o trabalho era feito por escravos. Em vez disso, Hegel concentrou sua atenção muito mais no mundo moderno, em uma tentativa de descrever a forma como a ordem social, política e econômica da sociedade moderna é capaz de realizar, à sua maneira, tanto a autonomia pessoal quanto algum sentido de significado comunitário. Nessa visão, há uma rosa a ser discernida na cruz do presente; a sociedade moderna vem a encarnar em si mesma valores comunitários e um senso de solidariedade sem a entrega da autonomia pessoal. As categorias econômicas, particularmente o trabalho, desempenham um papel importante no tipo de revalorização da história que se encontra nos escritos de Hegel daquele período. A vida burguesa não era vista como um declínio do modo de vida dos gregos, que ele havia considerado como o “povo feliz da história”; ao contrário, ele via na vida burguesa o desenvolvimento de um sentido de autonomia pessoal e de formas de interação social não tão imediatas, mas certamente tão ricas quanto as alcançadas na pólis grega.21Ler “The German Constitution”, in Political Writings (T. M. Knox [trad.], Oxford, 1964), p. 190-1; The Philosophy of Right (T. M. Knox [trad.], Oxford, 1942), §185. Essa convicção em desenvolvimento emergiu, de forma um tanto abstrata, em um ensaio daquele período: Sobre o amor. Nele, Hegel mostrou claramente uma atitude muito mais positiva em relação à pluralidade e à diferenciação, as quais, em seus ensaios anteriores, ele havia considerado como características banais da vida moderna.22Nohl, op. cit., p. 322-3. As formas de solidariedade social eram agora vistas como sendo geradas de forma parcial e específica, em torno de constelações específicas de interesse e necessidade.

Finalmente, neste ponto da discussão, algo deve ser dito acerca da concepção de Steuart de “estadista” e sua influência sobre Hegel. Por estadista, Steuart se refere à forma de governo. Em sua Investigação, ele argumenta que toda atividade econômica requer supervisão por um estadista; em particular na economia comercial moderna, o estadista, ou o governo, será capaz de mitigar alguns dos aspectos mais banais do crescimento das relações comerciais, por meio de uma política que supervisione o ritmo do desenvolvimento econômico.23Steuart. op. cit., p. 122. Essa concepção de intervenção pública e controle do ritmo de desenvolvimento econômico favorecido por Steuart era, de modo geral, estranha à visão do laissez-faire de Adam Smith; de fato, suas opiniões foram recebidas de forma muito crítica aqui na Grã-Bretanha justamente por esse motivo. Parece que Steuart foi influenciado pela tradição cameralista alemã e, em particular, pelos escritos de Justi.24A Investigação foi redigida em Tübingen, onde, como um jacobita, Steuart ficou exilado depois da rebelião de 1745. Como veremos, é possível interpretar os escritos de Hegel a respeito do tema da autoridade pública, desde o período Jena até a Filosofia do direito, em parte à luz do entendimento de Steuart sobre o papel do estadista e em parte à luz do que já foi dito acerca da visão de Hegel sobre como o mundo moderno encarna decisivamente um princípio de autonomia pessoal.

Hegel não estava mais convencido de que a redenção da sociedade moderna se encontrava na recaptura de algo como a religião popular grega; pelo contrário, a sociedade burguesa moderna, corretamente entendida, continha em si mesma as sementes de sua própria redenção. Mas era uma questão de compreensão correta. O desenvolvimento do mundo moderno e da economia moderna havia superado a capacidade do homem de compreendê-la em sua verdadeira natureza. As bifurcações da vida moderna foram, em grande parte, devidas a conceitos errôneos que não proporcionavam ao homem uma visão da totalidade da experiência social, mas relatos seccionais e mutuamente discordantes.

Evidentemente, este é o ponto exato em que a versão de Hegel do idealismo filosófico é importante. Em seu ensaio A diferença entre o sistema da filosofia de Fichte e de Schelling, Hegel argumentou que “a bifurcação é a fonte da necessidade da filosofia”.25In G. W. F. Hegel, Samtliche Werke, Bd. 1 (H. Glockner [org.], Stuttgart, 1927-30), p. 44. Era sua convicção que uma visão filosoficamente reflexiva e total das forças em ação na sociedade transfiguraria a compreensão do homem a respeito da experiência social e levaria a uma mudança fundamental em sua orientação para o mundo social. Na Filosofia do direito, ele argumentou: “Estou em casa no mundo quando o conheço, ainda mais quando tenho uma compreensão conceitual dele”.26The Philosophy of Right, op. cit., p. 226 (tradução modificada). A compreensão conceitual da atividade econômica do homem na sociedade moderna — sua propriedade, seu trabalho, sua interação com os outros no sistema das necessidades como consequência de seu trabalho, o papel e o caráter das classes sociais, a função das corporações dentro da sociedade civil e o papel externo do Poder Público ou do Estado na regulação da atividade econômica — teria exatamente esse resultado. Mas, é claro, esse empreendimento — que envolveria, por um lado, a prestação de contas da economia política que transcende o difícil e o rápido caráter bifurcante das justificativas dessa esfera a partir do nível do entendimento e, por outro lado, a prestação de contas conciliatórias e dialéticas em conformidade com a razão — seria apenas uma parte de um empreendimento total que englobaria não apenas a redescrição e a transfiguração do domínio socioeconômico ou político, mas também os domínios da arte, da religião e da própria filosofia.

A propriedade e a ordem normativa

A discussão do relato de Hegel a respeito da esfera da economia política será dividida em duas partes. A primeira será concernente à propriedade [property], sua posse [ownership] e suas consequências, que Hegel na verdade não colocou dentro da esfera da economia política propriamente dita. A segunda vai considerar o sistema das necessidades, que Hegel viu como o lócus da economia política — ou, mais propriamente, o seu objeto. A propriedade, embora tecnicamente esteja fora da esfera da economia política como Hegel a concebeu, é importante: em parte porque a propriedade e o caráter de sua propriedade dificilmente podem ser divorciados das questões sobre produção, riqueza e relações sociais geradas por ela; em parte porque, embora a propriedade pertença à esfera do “direito abstrato” e não ao “sistema das necessidades” na Filosofia do direito, o último — sendo um avanço dialético sobre o primeiro — dá ao primeiro a aufgehoben [superado; suprassumido]; isto é, não só a superação ou a transcendência, mas também a preservação. Ou seja, o homem autônomo de Hegel buscando satisfazer suas necessidades dentro do sistema das necessidades — a esfera da economia política propriamente dita — foi considerado como possuidor de propriedade nos termos definidos por Hegel e com as consequências sociais e jurídicas previstas por ele. O trabalho humano, dentro do sistema das necessidades, pressupunha, portanto, o direito à propriedade já estabelecido anteriormente no desenvolvimento da reformulação dialética da ordem social, e esse fato não poderia estar isento de consequências no sistema das necessidades.

A propriedade, na visão de Hegel, está intimamente ligada às questões antes mencionadas: o desenvolvimento da autoconsciência, da individualidade e da liberdade pessoal. A posse da propriedade é o modo pelo qual o conteúdo da vontade de uma pessoa é objetivado.27Ibid., §39. Concebida dessa forma, a propriedade pode ser considerada como uma instituição diferenciadora decisiva na sociedade. É uma maneira pela qual o homem se torna consciente de si mesmo, impondo sua vontade aos objetos materiais, sendo confrontado não por um mundo estranho, mas por um mundo humanizado, que ele pode usar para seus próprios fins. A propriedade é, portanto, a principal fonte de individualidade; e certamente a tradição liberal do pensamento político, particularmente na obra de Locke e, mais recentemente, em Nozick tendia a ver a apropriação da propriedade como um ato de autoafirmação individual. Nas observações de Hegel acerca da relação entre propriedade e personalidade, ele estava tentando levar em conta essa interpretação do papel da propriedade na vida humana. De fato, por ligar tão estreitamente a propriedade à personalidade e ao uso pessoal dela, ele se recusou completamente a aceitar qualquer papel para as propriedades de posse comum.28Ibid., §46. Desse modo, a posse da propriedade poderia ser considerada como uma poderosa força diferenciadora na sociedade humana, desenvolvendo um senso de autoconsciência e independência nos proprietários. Entretanto, ocorreu uma poderosa inversão dialética nesse argumento, que teve como resultado a creditação da propriedade com uma dimensão social igualmente importante. A posse e a apropriação são para Hegel condições necessárias, mas não suficientes, de propriedade. A propriedade como um direito [right] tem que ser reconhecida. Se a propriedade não é reconhecida por outros, então, embora um objeto possa ter sido apropriado, o direito [entitlement] a ela não foi justificado. A propriedade incorpora uma reivindicação de direito que transcende o mero poder de apropriação, e essa reivindicação só pode ser justificada dentro de um nexo de direitos e obrigações mutuamente reconhecidos.29Jenenser Realphilosophie, Bd. 1 (Hoffmeister [ed.], Leipzig, 1932), p. 240. Teorias do estado natural da propriedade eram inadequadas para Hegel. Poderiam ser capazes de explicar a apropriação como um poder, mas não poderiam explicar a propriedade como um direito, concedendo que os direitos pressupõem uma ordem normativa mutuamente reconhecida.30The Philosophy of Right, op. cit., §71.

Para Hegel, a propriedade pode ter origem na apropriação de objetos naturais pelo ser humano e, desse modo, leva a um desenvolvimento na autoconsciência e na individualidade; mas, ao mesmo tempo, uma pressuposição da propriedade não são apenas indivíduos com poderes naturais de apropriação, mas um sistema de direitos mutuamente reconhecido dentro do qual o conceito de direito central à posse da propriedade pode fazer sentido. Isso é típico dos argumentos de Hegel no campo da filosofia social e política: uma atividade ou instituição aparentemente individualista pressupõe uma dimensão social integral e necessária. A tradição liberal estava correta para ele ao vincular a propriedade à liberdade e à autoconsciência do homem, mas havia se equivocado na concepção da sociedade que se derivou dessa suposição. Uma compreensão mais profunda da propriedade mostrava que sua aceitação não implicava o relato individualista da ordem social característica do pensamento político liberal, mas tornava necessário situar a propriedade dentro de uma esfera das obrigações e dos direitos mutuamente reconhecidos.

Ademais, as relações de propriedade levaram, na visão de Hegel, a formas mais concretas de relações sociais e jurídicas. Um homem deve ser capaz de alienar sua propriedade, caso contrário, estaria vinculado à particularidade da natureza.31Ibid., §72. Certamente um homem precisa de propriedade para objetivar sua vontade, mas ele não precisa dessa propriedade em oposição àquela. A capacidade de alienar a própria propriedade, pois isso significa transferir o direito [entitlement] e não só a renúncia de algo apropriado, requer relações contratuais e um sistema legal. A propriedade e as relações normativas e jurídicas que dela decorrem não estão, na visão de Hegel, estritamente dentro da esfera da economia política, que é, em primeiro lugar, a esfera das necessidades. Todavia, os homens que atuam na esfera das necessidades, ou dentro do sistema de produção e troca, também são donos de propriedades. Entretanto, a posse da propriedade não é apenas uma característica do mundo moderno e é coerente com uma série de ordens socioeconômicas, enquanto a economia política é “uma das ciências que emergiram das condições do mundo moderno”.32Ibid., §189.

A constituição do sistema das necessidades

A esfera das necessidades, caracterizada pelo trabalho na produção de mercadorias [commodities] para mais do que subsistência, troca, dinheiro, divisão do trabalho, classes — são todas elas objeto de estudo da economia política. Na Filosofia do direito, Hegel esclarece esse ponto de forma totalmente inequívoca: “A economia política é a ciência que parte dessa visão das necessidades e do trabalho, mas tem a tarefa de explicar as relações de massa e os movimentos de massa na sua complexidade e na sua forma qualitativa e quantitativa… Seu desenvolvimento proporciona o interessante espetáculo (como em Smith, Say e Ricardo) do pensamento trabalhando na massa interminável de detalhes que a confrontam no início e extraindo dela os princípios simples da coisa”.33Ibid., §189. E uma vez mais: “Descobrir o elemento necessário aqui é o objeto da economia política, uma ciência que é um ganho ao pensamento porque encontra leis para uma massa de acidentes”.34Ibid., adendo ao §189. O sistema das necessidades é a esfera sobre a qual a ciência da economia política opera. Entretanto, foi preciso um grande esforço intelectual de Hegel, até sua composição da Filosofia do direito, para constituir o sistema das necessidades como o objeto apropriado para a economia política.

Ao longo dos escritos do período Jena (System der Sittlichkeit, Jenenser Realphilosophie, 1 e 11). Hegel não conseguiu distinguir claramente o sistema das necessidades como o sistema de produção e troca característico do mundo moderno. Nesses trabalhos, particularmente no System der Sittlichkeit, Hegel faz comentários extremamente agudos acerca do caráter do trabalho, da divisão do trabalho, das necessidades e dos desejos humanos e como eles se relacionam com o sistema produtivo; mas esses comentários se situam ao lado de suas futuras avaliações da pólis grega e de outras discussões acerca dos sistemas sociais pré-comerciais. Essa interessante característica do desenvolvimento de Hegel foi particularmente comentada por Manfred Riedel: “O jovem Hegel coloca os traços duros do mundo moderno, trabalho, maquinaria, dinheiro e a mercadoria, riqueza e pobreza, quase sem aparas [unbehauen] ao lado da arrebatadora e vital tradição cultural da Antiguidade, sem examiná-los em si mesmos ou mesmo ser capaz de uni-los sistematicamente em relação uns aos outros”.35Studien zu Hegels Rechtsphilosophie, op. cit., p. 152. Nessa época, Hegel já havia lido não só Steuart, mas também Smith, e estava lutando para tentar dar conta das características da sociedade moderna às quais os economistas políticos se dirigiam. Mas suas preocupações anteriores com o helenismo interferiram em sua capacidade de ver claramente as principais linhas do sistema das necessidades como uma forma autônoma e moderna de interação humana. Na Filosofia do direito, porém, o sistema das necessidades foi constituído firmemente dentro de um relato do mundo moderno, e todas as complicações produzidas pelas preocupações anteriores do autor recuaram para segundo plano.

Em Ler o Capital, Althusser argumenta que o reconhecimento e a caracterização de Hegel do sistema das necessidades como objeto da economia política foi muito importante para a coerência teórica da ciência e, portanto, é implicitamente objeto da crítica de Marx: “A economia clássica só pode pensar os fatos econômicos como pertencendo ao espaço homogêneo de sua positividade e mensurabilidade na condição de aceitar uma antropologia ‘ingênua’ que funda todos os atos envolvidos na produção, distribuição, recepção e consumo dos objetos econômicos sobre os sujeitos econômicos e suas necessidades. Hegel forneceu o conceito filosófico da unidade dessa antropologia ‘ingênua’ com os fenômenos econômicos em sua famosa expressão ‘a esfera das necessidades’ ou ‘sociedade civil’, como diferente da sociedade política. No conceito da esfera das necessidades, os fatos econômicos são pensados como baseados em sua essência econômica sobre sujeitos humanos que são presa da ‘necessidade’: sobre o Homo oeconomicus, que também é um dado (visível, observável)”.36Reading Capital (Londres, 1970), p. 162. Althusser argumenta que há duas características do sistema das necessidades: um mundo de fenômenos dados e mensuráveis — fatos econômicos; e o que ele chama de “antropologia ideológica”, por meio da qual baseia o caráter econômico do fenômeno e seu “espaço” no homem como “sujeito das necessidades” — sujeitos produtivos na divisão do trabalho que produzem objetos de consumo destinados a satisfazer esses mesmos sujeitos das necessidades. Nessa visão, enquanto Smith e Ricardo podem ter produzido uma espécie de descrição fenomenológica do caráter superficial da produção, da troca e do consumo, é Hegel quem, eventualmente, e depois de uma luta, como vimos, produz o conceito filosófico do objeto da economia política: a esfera das necessidades.

Talvez seja verdade que a especificação de Hegel do sistema das necessidades seja importante para a economia política clássica, como sugere Althusser, embora nem todos os economistas compartilhem dessa visão.37Ler o famoso comentário feito por Joan Robinson: “What business has Hegel putting his nose between me and Ricardo?”, in On Re-Reading Marx (Cambridge, 1953), p. 22-3. Mas o relato de Althusser a respeito das características gerais da concepção de Hegel do sistema das necessidades é muito deficiente. No trecho citado acima, ele parece equacionar “a esfera das necessidades” com “sociedade civil”, quando na verdade a esfera das necessidades é apenas uma parte da “sociedade civil”, ou bürgerliche Gesellschaft. Na verdade, a discussão de Hegel acerca da relação entre a esfera das necessidades e a sociedade civil em geral foi concebida só para mostrar o quão restrita e, portanto, inadequada seria uma descrição da atividade econômica moderna em uma visão inteiramente baseada na esfera das necessidades. O sistema das necessidades tem que ser visto também no contexto da administração da justiça e do direito, do Poder Público e das empresas [corporations]. Na verdade, como será visto, o papel destes dois últimos foi central precisamente porque Hegel passou da concepção do homem dentro do sistema das necessidades, que ele considerava inadequado para uma compreensão plena da vida econômica e comercial do homem.

Ademais, Althusser implica que Hegel viu o sistema das necessidades como uma esfera autônoma de interação humana, com certos fenômenos — atividades econômicas — que o caracterizam. Certamente é verdade que, se o leitor voltar sua atenção para a seção sobre a esfera das necessidades da Filosofia do direito, ele poderá derivar essa impressão. Entretanto, essa impressão seria fundamentalmente equivocada por dois motivos. Primeiro, a seção a respeito do sistema das necessidades ocorre na terceira parte da Filosofia do direito. As duas partes anteriores são “direito abstrato” (que trata do homem como possuidor de propriedade) e “moralidade” (na qual Hegel considera o homem como um agente moral autônomo). Ambas as facetas da vida e da atividade humana são pressupostas na caracterização do sistema das necessidades. Isso se deve à própria natureza da dialética, na qual os pontos de vista são transcendidos, mas o que é verdadeiro dentro deles é preservado no nível transcendido. Hegel, de fato, refere-se à forma como as oportunidades de participação do homem nos recursos produtivos gerais de sua sociedade são condicionadas pela posse de capital permanente, pelo qual ele se refere aos “bens determinados especificamente como permanentes e seguros”.38The Philosophy of Right, op. cit., p. 170. O sistema das necessidades não é uma esfera autônoma de interação: outros aspectos da vida humana são assumidos e pressupostos por ele.

A segunda razão pela qual isso se refere a uma questão filosófica mais profunda, que não pode ser mais do que brevemente mencionada no contexto atual, encontra-se na Ciência da lógica, em que Hegel foi crítico do que ele chamou de pensamento do entendimento [Verstand], pois o entendimento é aquela atitude da mente que toma tudo como dado, com limites completamente demarcados — como é e não é outra coisa.39The Science of Logic (A. V. Miller [trad.], Londres, 1969), p. 45. Na Filosofia do direito (§184), a esfera econômica é descrita como uma totalidade relativa. O entendimento busca explicar fenômenos que tentam converter determinações em abstrações, independentemente de outros fenômenos. Na Ciência da lógica, na seção “Determinar o ser”, Hegel argumenta que isso é impossível. Nessa visão, seguindo Spinoza, toda determinação e identificação pressupõe a negação. Ou seja, se um fenômeno é caracterizado em termos de qualidade x, então x é significativo apenas contra um pano de fundo de outras qualidades que ele descarta. Podemos compreender o fenômeno como x apenas na medida em que o compreendemos como não y, não z etc. As qualidades que algo não tem são exigidas de forma não contingente para o nosso entendimento da qualidade ou qualidades que ele possui.40Cf. Jenenser Logik (Hoffmeister [org.], Leipzig, 1923), p. 4. Ler Raymond Plant, Hegel (Londres, 1973), p. 100; C. Taylor, Hegel (Cambridge, 1975), p. 233-4. Algo determinado existe, portanto, na visão de Hegel, apenas dentro de um nexo de relações de inclusão e exclusão, e isso se aplica igualmente bem à esfera econômica. A esfera do econômico, ou do sistema das necessidades, só pode ser determinada em relação a outras modalidades de experiência e prática social que sua determinação descarta. O pensamento do entendimento ignora tudo isso, e, de modo discreto, toma os tipos de atividades sociais como dados.

Consequentemente, quando Hegel argumenta que uma explicação é característica do entendimento, ele implica que ela é basicamente inadequada. É uma explicação de uma forma abstraída do fenômeno que não é vista em suas relações dialéticas não contingentes com outros fenômenos; e erros grosseiros são cometidos quando essas explicações são tomadas como absolutas, em vez de provisórias e capazes de transcender. Ao longo de sua descrição do sistema das necessidades como objeto da economia política, Hegel pressupôs duas coisas. Primeiro, que o fenômeno assim constituído, o sistema das necessidades, seja uma abstração. Segundo, que a explicação disso, do ponto de vista da economia política, é, em si mesma, abstrata e capaz de transcendência. Nesse contexto, ele disse o seguinte a respeito da economia política: “Seu desenvolvimento [da economia política] proporciona o interessante espetáculo [como em Smith, Say, Ricardo] do pensamento trabalhando a massa interminável de detalhes que a enfrenta no início e extraindo dela os princípios simples da coisa, o entendimento efetivo na coisa e a dirigindo”.41The Philosophy of Right, op. cit., p. 189. A esfera da economia política não foi dada para Hegel da forma como poderia ser para um positivista. Ela foi constituída dentro de um nexo de relações com outros aspectos da vida social humana e só era inteligível dentro desse conjunto de relações. Qualquer tentativa de fazer da economia política o mestre da ciência social, ou de usá-la como base para uma posição filosófica geral como, até certo ponto, os utilitários fizeram, teria sido para Hegel um equívoco colossal tanto da natureza abstraída dos fenômenos a serem explicados quanto das explicações provisórias inadequadas oferecidas na economia política.

O mesmo equívoco é característico na discussão de Althusser sobre o que ele chama de antropologia ideológica de Hegel, que ele vê como central para a especificação do sistema das necessidades — ou seja, que os seres humanos são “presas da necessidade”, ou “sujeitos da necessidade”. Na visão de Althusser, a esfera do econômico é, de algum modo, dada ou gerada por essa concepção da natureza humana. A esfera econômica é a esfera em que os homens agem para satisfazer as necessidades a que estão sujeitos. As estruturas de consumo, troca e produção derivam de hipóteses acerca do homem como sujeito de necessidade. Mais uma vez, é difícil evitar a conclusão de que essa suposição se baseia em uma leitura errônea fundamental de Hegel, visto que ele não vê os homens como “sujeitos da necessidade” ou como “presas da necessidade”. Mas pelo contrário, ele via isso características da vida animal. O animal está preso dentro da esfera das necessidades instintivas e da exigência de satisfazê-las; os seres humanos, por outro lado, embora sejam presas ou sujeitos das necessidades de subsistência, são capazes de transcender esse nível por meio do trabalho. Assim, desenvolvem novas necessidades ou desejos, com base não nas suas exigências puramente biológicas, mas na livre escolha, a qual acompanha a dimensão libertadora da consciência do trabalho: “As necessidades de um animal e o seu modo e os seus meios de as satisfazer são ambos igualmente limitados em seu alcance. Embora o homem também esteja sujeito a essa restrição, ao mesmo tempo em que evidencia a sua transcendência e a sua universalidade”.42Ibid., §190.

As necessidades humanas não são dádivas biológicas absolutas, nem o homem é presa para elas. Ele desenvolve suas necessidades com base em sua crescente autoconsciência, ligada como que ao crescimento do trabalho e à relação transformadora do homem com os objetos naturais. Em que sentido, pois, encontramos isso, nos termos de Althusser: “As pretensões teóricas da antropologia foram quebradas pela análise de Marx, o qual define essas necessidades como históricas e não como dádivas absolutas (Miséria da filosofia, p. 41-2; Capital, livro 1, p. 174, 228; livro 2, p. 171, 232; livro 3, p. 837, etc.), mas também, e sobretudo, as reconhece como ‘necessidades’ em sua função econômica, na condição de serem efetivas (Capital, livro 3, p. 178, 189)”.43Reading Capital, op. cit., p. 166. Hegel tinha exatamente a mesma opinião. O trecho citado acima mostra que ele não via as necessidades como dádivas absolutas. Elas têm claramente uma história relacionada ao crescimento da autoconsciência e o ponto de vista é feito muito diretamente no parágrafo 194 da Filosofia do direito. Hegel argumenta explicitamente que qualquer teoria que veja as necessidades do homem como absolutas e fixadas pela natureza “não leva em conta o momento de libertação intrínseco ao trabalho”, e, no parágrafo anterior, ele se refere à “necessidade social”. Se a análise de Marx destruiu quaisquer pretensões, elas não são de Hegel.

Isso é igualmente verdade para a parte final da citação de Althusser. Hegel teria concordado que a esfera econômica não é só um reflexo das necessidades preexistentes e da luta para satisfazê-las. Ele reconheceu uma complexa interação entre o caráter das necessidades e as estruturas econômicas: “As condições sociais tendem a multiplicar e subdividir necessidades, meios e fruições indefinidamente”.44The Philosophy of Right, op. cit., §195. A esfera das necessidades não é uma dada ordem fixa, que é o objeto inabalável da economia política. Ambas são abstrações que precisam ser restituídas em um contexto mais amplo de explicação social. A concepção da natureza humana que Hegel faz da caracterização da esfera da necessidade não é aquela em que o homem é a presa da necessidade, ou sujeito da necessidade; antes, o homem é o soberano da necessidade, desenvolvendo necessidades como resultado do crescimento de sua própria autoconsciência.

Dentro da descrição do sistema das necessidades na Filosofia do direito, Hegel se preocupa com três características principais: trabalho, necessidade e as complexas formas de organização social geradas pela divisão do trabalho. Em cada um desses casos, Hegel se preocupa em relacionar a discussão ao seu relato acerca do desenvolvimento da autoconsciência e da autonomia humanas, que ele vê como características da sociedade moderna; e, ao mesmo tempo, tenta mostrar que, mesmo dentro do sistema das necessidades, em que é dada rédea solta a autoconsciência privada, são desenvolvidas formas muito complexas e importantes de relações sociais.

Continua

New Left Review, Londres, v. 1, n. 104, pp. 103-13, jul./ago. 1977.
ISBN 0028-6060

Tradução de Felipe Cotrim

Parte 2

O trabalho [labour] é uma noção central nas obras de Smith e Ricardo, e é uma elaboração do conceito de trabalho que permite a Hegel dizer algo a respeito do desenvolvimento humano e da autonomia humana que vai além do que se pode encontrar na economia política convencional. As principais linhas de seu relato já foram expostas na discussão de Althusser; resta apresentar os pontos de forma mais sistemática. É no trabalho que o homem se distingue do animal. O animal tem necessidades e as gratifica com o mero consumo de objetos. Por outro lado, o homem que também tem uma vida instintiva, biológica, transcende esse nível de relação com os objetos naturais. Por meio do trabalho, ele transforma os objetos naturais em seus próprios projetos e intenções. Ao mesmo tempo, ao transformar objetos, o homem vem a conhecer melhor o seu caráter e as leis que regem o seu ser. Ele então faz uso desse conhecimento, incorporando-o aos processos do trabalho. Isso desenvolve novamente o leque de transformações que ele é capaz de efetuar na realidade externa, e envolve também um aumento do seu conhecimento teórico do mundo dentro do qual ele vive: “O desejo reservou para si mesmo a pura negação do objeto e, assim, o sentimento genuíno de si mesmo. Essa satisfação, entretanto, só por essa razão, é em si apenas um estado de evanescência, pois lhe falta objetividade e subsistência. O trabalho, pelo contrário, é desejo contido e controlado, evanescência retardada, ou seja, o trabalho formata e modela a coisa… a consciência que labuta e serve em conformidade obtém, por esse meio, a apreensão direta daquele ser independente como a si mesmo… Pelo fato da forma ser objetivada, não se torna outra coisa que a consciência que molda a coisa por meio do trabalho; pois só essa forma é a sua pura autoexistência que nela se realiza verdadeiramente”.45The Phenomenology of Mind (Baillie [trad.], Londres, 1964), p. 225. Cf. The Philosophy of Right, op. cit., §194, adendo ao §190; Jenenser Realphilosophie, Bd. 2, op. cit., p. 197. [Para referências de notas de rodapé anteriores, ler NLR, n. 103].

Trabalho, ferramentas e integração

O trabalho é uma categoria central do sistema das necessidades, mas é muito mais do que isso para Hegel. É central para a autoconsciência e para o conhecimento dos objetos do mundo natural, mas, ao mesmo tempo, essas características transcendentes do trabalho têm consequências dentro do sistema das necessidades. As carências [needs] multiplicam-se para além da necessidade [necessity], devido ao desenvolvimento tanto da autoconsciência como da habilidade manipuladora perante o mundo natural, e essa multiplicação de carências é o veículo para o desenvolvimento econômico. Hegel também utilizou o trabalho para ajudar a resolver o profundo problema filosófico que o preocupava e que herdara de Kant, Fichte e Schelling, ou seja, a relação entre sujeito e objeto.46Ler The Philosophy of Right, op. cit., (§189), em que o trabalho é descrito como o meio termo entre o subjetivo e o objetivo. Foi o trabalho, com suas dimensões duplas de desenvolvimento da consciência do sujeito e manipulação de objetos externos, que ajudou a resolver esse problema para Hegel. Foi no trabalho que a conciliação entre sujeito e objeto foi superada para ele.

Todas estas características do trabalho, tanto dentro da economia política como fora dela, sublinham até que ponto o trabalho é uma faceta libertadora da atividade humana, mas é também muito mais do que isso. O desenvolvimento da autoconsciência, por meio do trabalho dos outros, ajuda o homem a satisfazer as suas próprias necessidades. Dentro do processo subjetivo do trabalho é gerado um complexo sistema de dependência mútua: “Quando os homens são assim dependentes uns dos outros e reciprocamente relacionados uns com os outros no seu trabalho e na satisfação das suas necessidades, a autossuficiência subjetiva se transforma em uma contribuição para a satisfação das necessidades de todos os outros. Ou seja, por um avanço dialético, a busca subjetiva de si mesmo se transforma na mediação do particular por meio do universal, com o resultado de que cada homem ao ganhar [earning], produzir e desfrutar por conta própria está eo ipso [por si mesmo] produzindo e ganhando para o desfrute de todos os outros”.47The Philosophy of Right, op. cit., §54. Esse é apenas o tipo de inversão dialética que foi mencionado antes como sendo característica do relato de Hegel acerca do mundo social. O trabalho, o conceito crucial da economia política clássica, que havia gerado uma visão da sociedade radicalmente individualista, foi usado por Hegel não só como uma categoria dentro da economia política, mas em um quadro de explicação de generalidade mais ampla. Demonstrou-se que se produzia uma visão de sociedade que fazia plena justiça às reivindicações de autonomia humana, mas, ao mesmo tempo, dentro do mesmo relato, tentava mostrar que formas complexas de interdependência mútua são alcançadas. Esse organicismo pode não ser a sinnliche Harmonie [harmonia dos sentidos] da pólis grega; mas existem padrões de interdependência mútua na sociedade moderna, embora sejam de uma forma mais abstrata e muito mais difícil de elucidar. Entretanto, a própria economia política clássica tem sido a base desse relato, ainda que os escritores dessa tradição não tenham dado peso suficiente a esse aspecto em suas obras. O economista político, na visão de Hegel, está tentando encontrar “aqui a reconciliação para descobrir, na esfera das necessidades, essa demonstração de racionalidade situada na coisa e eficaz nela”.48Ibid., §189.

A ferramenta é claramente uma parte central do aspecto transformador e, portanto, de desenvolvimento da consciência do trabalho. Como disse Hegel na Ciência da lógica: “Em suas ferramentas, o homem possui poder sobre a natureza externa”.49The Science of Logic, op. cit., p. 747. Entretanto, há aspectos das ferramentas que vão além do papel que elas desempenham no autodesenvolvimento pessoal, e estes foram igualmente enfatizados por Hegel. Um instrumento é um instrumento público que, em princípio, está ao alcance de todos, permitindo assim que o domínio sobre a natureza assegurado especificamente por ele seja repetido, pelo menos em princípio, por qualquer pessoa: “No instrumento, a subjetividade do trabalho foi elevada a algo universal; todos podem iniciá-lo precisamente da mesma forma, sendo assim a regra constante do trabalho”.50“System der Sittlichkeit”, in Lasson (ed.), Schriften zur Politik und Rechtsphilosophie (Leipzig, 1932), p. 428. As ferramentas ajudam a rotinizar o domínio da natureza e tornam tanto a sua transformação, como o autodesenvolvimento que a acompanha, disponível a todos os homens. Mais uma vez, há a mesma dialética em ação: aquela que desenvolve a autoconsciência individual tem um elemento universal simultaneamente presente dentro dela. Ao mesmo tempo, a ferramenta une gerações, no sentido de que uma nova geração herda das velhas certas técnicas de produção envolvendo ferramentas. Essa é outra importante dimensão social do uso das ferramentas; uma ferramenta “é herdada nas tradições enquanto aquilo que deseja e aquilo que é desejado só subsiste como indivíduos, e indivíduos falecem”.51Jenenser Realphilosophie, Bd. 1, op. cit., p. 221.

Hegel não viu o sistema das necessidades como necessariamente gerando uma visão radicalmente individualista da sociedade; ao contrário, as atividades características da esfera econômica, tanto na produção quanto na troca, pressupõem padrões muito intrincados de interdependência mútua. Essas formas de interdependência não se baseiam em características periféricas da vida humana. Pelo contrário, o trabalho e o uso de ferramentas são formas centrais do ser humano chegar à autoconsciência; desse modo, as formas de mutualidade que se encontram dentro delas são de grande importância. Características semelhantes são também características da divisão do trabalho dentro do sistema das necessidades. Conforme as necessidades se desenvolvem, os processos produtivos têm de atendê-las. Isso exige uma divisão crescente do trabalho: “A partir de então, a subdivisão das necessidades e dos meios eo ipso subdivide a produção e traz consigo a divisão do trabalho”.52The Philosophy of Right, op. cit., §198. Novamente, isso é, de certa forma, um ganho na autoconsciência, conforme as habilidades específicas de um indivíduo aumentam; ao mesmo tempo, essa complexa divisão do processo produtivo leva mais uma vez a formas extremamente intrincadas de dependência mútua e “relação recíproca na satisfação de suas outras necessidades”.

Correlacionados com a divisão do trabalho estão os grupos sociais mais importantes dentro do sistema das necessidades, ou seja, as classes, das quais Hegel distinguiu três: a classe agrícola; a classe empresarial e a administração pública. Hegel não definiu as classes em termos de relação com os meios de produção, mas com os tipos de trabalho, as habilidades gerais necessárias para seu desempenho e o tipo de éthos, ou consciência, que produz entre aqueles que executam essas tarefas. Sua classe agrícola, por exemplo, continha tanto proprietários de terras quanto trabalhadores rurais, e essa ênfase no éthos, ou modos de consciência ligados às habilidades na produção, era para permitir a Hegel afirmar, uma vez mais, que o sistema das necessidades produz integração social. Ele o fez de duas maneiras: primeiro, um indivíduo está unido a membros de sua sociedade com os quais têm certas coisas em comum, com base no trabalho e nas habilidades que o acompanham; segundo, essas classes específicas que produzem diferentes tipos de consciência e éthos estão juntas, não em oposição, mas em um sistema de interdependência mútua ou funcional.

Ao mesmo tempo, o pertencimento a uma classe está igualmente relacionado ao crescimento da consciência do indivíduo, tanto quanto à integração social. Como indivíduo no sistema das necessidades, o homem busca satisfazer suas próprias carências ou as de sua família imediata; sua motivação é totalmente egoísta, quaisquer que sejam os padrões de integração social que dela surjam. Entretanto, Hegel considerou a autoconsciência como marcada por características universais, e não só por particularidades. A consciência de cada homem é formalmente universal: “Toda autoconsciência conhece a si mesma como universal”. Em outras palavras, um homem individual, ao contrário de um animal, está consciente de que tem desejos e é capaz de escolher quais ele vai perseguir. Cada indivíduo está consciente de sua própria identidade, apesar da mudança no fluxo de seus desejos e interesses. Ao mesmo tempo, esse sentimento de universalidade da autoconsciência era puramente formal para Hegel. A universalidade do conteúdo da mente tem que ser desenvolvida, caso contrário o homem será um ser bifurcado interiormente: um sentido de universalidade, por um lado, confrontando-se com uma massa de desejos episódicos e particulares, por outro — a posição para a qual Kant tinha sido conduzido em sua psicologia moral. Era, portanto, vital, para dar um relato coerente da autoconsciência em seus próprios termos, que Hegel pudesse explicar como as reivindicações da universalidade poderiam ser feitas para se equiparar à particularidade do desejo e da necessidade, em que Hegel diz que tudo está “perdido para a particularidade”. Sua resposta a esse problema foi uma resposta desenvolvimentista. O homem aprende, por meio da participação em instituições específicas, a levar em conta uma perspectiva cada vez mais ampla de valores; o pertencimento a uma classe social é uma das formas em que esse processo educativo ou socializante acontece. Ao ser membro de uma classe, o homem aprenderá não só a ter um senso de solidariedade com os outros, mas também a levar em conta as reivindicações e os desejos dos outros na formação de suas próprias intenções. Ser membro de uma classe social é, portanto, mais um caminho dentro do sistema das necessidades em que existe uma simbiose dialética entre o crescimento da autoconsciência, por um lado, e a geração de formas de integração social, por outro.

Comunidades parciais e sociedade civil

O relato de Hegel a respeito de como o sistema das necessidades pode fornecer uma base para a interdependência mútua e a autonomia pessoal não foi, entretanto, exaustivo. Ele argumentou que o próprio caráter do sistema das necessidades é tal que ele tem que ser transcendido e situado no contexto de outras instituições. Certamente, a integração e a autonomia existem dentro da esfera da necessidade, mas, ao mesmo tempo, o fazem de modo um tanto aleatório. O sistema das necessidades e as relações geradas dentro dele podem ser facilmente perturbadas por mudanças nos métodos de produção, pela demanda contínua por novas mercadorias e por fatores externos, como mudanças nos termos de troca entre países. O sistema das necessidades, embora seja um mecanismo delicado para combinar autonomia e inter-relação, ainda é frágil e facilmente perturbado. Isso foi usado por Hegel para sustentar a necessidade de alguma forma de controle sobre as relações econômicas, para que os padrões de autonomia e independência assegurados dentro do sistema das necessidades sejam racionais e seguros. Nesse ponto, podemos ver novamente a influência da Steuart. Embora saibamos que, em 1801, Hegel já havia lido Smith,53Ler Jenenser Realphilosophie, Bd. 1, op. cit., p. 238. essas ideias a respeito das limitações necessárias ao laissez-faire não devem ter vindo dessa fonte. A teoria do estadista de Steuart foi, como vimos, expressamente formulada em sua discussão acerca da economia de troca, como instrumento de controle e direção dessa economia e visando evitar “danos a qualquer membro da comunidade”. Rosenkranz argumenta que, entre outras coisas, Steuart influenciou o pensamento de Hegel a respeito do papel policial do Estado. Certamente, as preocupações de Hegel, como as temos visto se desenvolver, e a argumentação de Steuart se encontram justamente nesse ponto. Por Polizei,54Para uma discussão completa sobre Polizei, ler Riedel, op. cit., p. 161. Hegel entendeu a função de controle do Estado sobre o sistema das necessidades; em suas obras sociais e políticas, encontramos Hegel desenvolvendo uma teoria sobre o papel do Poder Público, ou as funções policiais do Estado, que permitiria tornar mais seguras as relações bastante contingentes dentro do sistema das necessidades.

Entretanto, a visão de Hegel acerca das funções policiais do Estado em relação ao sistema das necessidades era bastante diferente da visão de Steuart. Hegel ressaltou, de um modo que Steuart não o fez, que a função policial do Estado tinha que ser consistente com o moderno senso de liberdade pessoal e autoconsciência, as quais estavam precisamente asseguradas dentro do sistema das necessidades. O equilíbrio da economia só poderia ser devidamente assegurado se fosse consistente com os valores sociais assegurados nas atividades econômicas da sociedade. Rosenkranz diz que Hegel lutou com o que estava morto no sistema de Steuart, e essa pode ter sido apenas uma daquelas questões em que Hegel abriu uma exceção à posição de Steuart. Ao considerar o papel do Estado perante o sistema das necessidades, Hegel parece ter mantido, em sua mente, o caráter possivelmente estranho do Estado moderno, que ele via como característico do mundo romano.55Nohl, op. cit., p. 223. Como resultado dessa percepção, Hegel rejeitou qualquer tipo de função policial para o Estado que fosse incompatível tanto com um senso de autonomia pessoal quanto com um senso de identificação do cidadão com a função de controle do Poder Público.

Esse ponto ficou muito claro em seu artigo de juventude sobre “A Constituição Alemã” (1800-1), no qual ele criticava o governo prussiano por colocar muito poder nas mãos do Poder Público e não reconhecer suficientemente que a liberdade do indivíduo é inerentemente sacrossanta.56Lasson, op. cit., p. 28-9. Muito pouco controle levaria à possível quebra do sistema das necessidades, ou ao prejuízo dos indivíduos por meio de um ritmo descontrolado de mudanças econômicas; muito controle asfixiaria a própria autonomia característica da atividade econômica. O problema de encontrar uma via media foi bem colocado na Filosofia do direito: “Duas visões predominam no momento atual. Uma afirma que a superintendência de tudo propriamente pertence ao Poder Público; a outra que o Poder Público nada tem a regular aqui, porque cada um direcionará seus esforços para as necessidades dos outros”.57The Philosophy of Right, op. cit., §236. A segunda dessas alternativas é irrealista, considerando até que ponto o sistema das necessidades é um sistema dentro do qual os indivíduos agem de forma autodirigida; o primeiro Hegel via como apropriada só em uma sociedade na qual o senso de liberdade e autonomia pessoal não havia surgido e alguma tarefa pública gigantesca tinha que ser cumprida — aqui Hegel dá o exemplo da construção das pirâmides no Egito. Naquele tipo de sociedade, em que a consciência da liberdade subjetiva ainda não se desenvolveu, esse controle centralizado do trabalho é justificado.

Entretanto, a sociedade moderna não está enfaticamente nessa posição: o Poder Público deve controlar apenas até um ponto que seja necessário para manter o equilíbrio do sistema das necessidades. Além disso, como o Estado externo, isso é, como imposto à particularidade dos interesses subjetivos na esfera econômica, tem de estar sob algum tipo de controle político representativo, sob pena de aparecer como uma instituição alheia. O tipo de controle que Hegel via como sendo legitimamente exercido dentro da esfera do Poder Público incluía a fixação dos preços dos bens de consumo necessários; a arbitragem de disputas entre produtores e consumidores de mercadorias; a disseminação de informações relativas aos termos de troca e à situação econômica geral em que a indústria operava; e a supervisão da colonização, que, como veremos, estava intimamente ligada, para Hegel, ao problema da pobreza gerada dentro da sociedade civil.58Ibid., §236 ss. O funcionamento do Poder Público dentro dessas esferas permitiria que o sistema das necessidades operasse de forma mais eficaz e com mais equilíbrio do que de outra forma. Ao mesmo tempo, o nível de controle teria de ser tal que protegeria a liberdade pessoal.

Nesse sentido, Hegel foi além de Steuart em sua compreensão do papel do Poder Público. Como diz Rosenkranz, Hegel estava preocupado em atacar o que estava “morto naquele sistema [de Steuart] e procurou proteger a vida interior do homem no meio da competição, da mecanização do trabalho e do comércio”.59Rosenkranz, op. cit., p. 86. O Poder Público, ao regular o sistema das necessidades de forma a preservar tanto quanto possível a autonomia pessoal, é uma das formas centrais em que Hegel tentou assegurar das Gemüt der Menschen [o temperamento, ou a alma, dos seres humanos] dentro da economia moderna. Desse modo, esse ideal se relaciona com as primeiras preocupações do filósofo com a perda de qualquer senso de totalidade e integridade da personalidade. Sua compreensão desse valor e as restrições à sua realização certamente se aprofundaram desde seus primeiros ensaios em Tübingen. O valor da autonomia pessoal ainda era, em certo sentido, fundamental para ele, e foi importante no relato que ele fez de uma das estruturas centrais da economia política moderna.

A segunda forma pela qual Hegel foi além de Steuart, em sua preocupação com a personalidade individual dentro do sistema das necessidades, foi sua consideração da vitalização das capacidades e poderes humanos que podem acompanhar os processos produtivos da sociedade moderna. A liberdade subjetiva que foi assegurada no mundo moderno por meio do trabalho e do sistema das necessidades foi certamente um momento importante na libertação humana, mas, ao mesmo tempo, teve seus próprios custos. Na mente de Hegel, esses custos eram, em linhas gerais, duas vezes maiores. Em primeiro lugar, a busca da liberdade subjetiva dentro do sistema das necessidades pode resultar em uma diminuição dos laços cívicos. Mesmo que, como vimos, esse sistema produza suas próprias formas de interdependência econômica, essas formas de interação ainda são de tipo restrito e seccional. Em segundo lugar, o trabalho dentro da indústria manufatureira pode muito bem levar à vitalização da personalidade humana, devido à natureza mecanicista abstrata do trabalho envolvido. Nessas duas formas, a vida interior foi desenvolvida e, ao mesmo tempo, ameaçada dentro do sistema das necessidades. No primeiro caso, os homens foram feitos inteiramente aos interesses subjetivos, enquanto que, para Hegel, o homem é sensível tanto aos interesses universais quanto aos subjetivos e seccionais. No segundo caso, a divisão do trabalho estava tornando o trabalho, que deveria ser libertador, sem vida e mecânico. Ambos os fatores poderiam levar a consequências sociais nefastas: “Uma massa da população está condenada ao trabalho estonteante, insalubre e inseguro das fábricas, manufaturas, minas, etc… essa necessidade se transforma no desmembramento máximo da vontade, da rebeldia interior e do ódio”.60Jenenser Realphilosophie, Bd. 1, op. cit., p. 232-3. Os problemas colocados pela sociedade comercial não são apenas aqueles confinados à coesão social, mas também dizem respeito à vida interior do homem. Uma economia política que seria filosoficamente adequada tinha que ser capaz de lidar com esse tipo de custos envolvidos na atividade econômica.

O problema da perda dos laços cívicos é central dentro do sistema das necessidades, pois, dentro dessa esfera, só valores subjetivos e coletivos são realizados:61Ler The Philosophy of Right, op. cit., §238 e The German Constitution, op. cit. valores subjetivos por meio da busca do interesse econômico próprio no mercado; valores coletivos pelo desenvolvimento dentro do sistema das necessidades das classes sociais, e, na arena mais ampla, da sociedade civil, das corporações estruturadas em torno de interesses desenvolvidos dentro do sistema das necessidades. No máximo, a adesão de classes e corporações produz só um senso de comunidade parcial e seccional. Entretanto, a visão de Hegel não era de que a busca de interesses privados e o desenvolvimento de interesses seccionais realmente impedem um senso geral de comunidade. Sem a busca de interesses privados, não há senso de autonomia pessoal — e qualquer comunidade moderna terá que ser consistente com este valor. A filiação de classe e a participação em corporações também são vitais para o desenvolvimento de um senso integral de comunidade, porque elas atuam como instituições educativas, desenvolvendo nos indivíduos uma consciência das reivindicações dos outros e seus interesses que transcende o nível puramente pessoal. Um senso integral de comunidade tem que ser mediado [vermittelt] por meio de instituições específicas de apoio diferenciado. Como argumenta G. Kelly: “A corporação… harmoniza o homem em pequena escala e o torna apto para a fraternidade do Estado como ele é naturalmente para a família”.62 “Hegel’s America” (Philosophy and Public Affairs, v. 2, n. 1), p. 236.

Ao mesmo tempo, embora transcendam o âmbito pessoal, essas instituições estão enraizadas em interesses econômicos específicos. Como resultado, elas não incorporam nenhum sentido de identificação pessoal com uma ordem universal normativa integral, característica que Hegel considerava central à vida humana só porque o homem é consciente de si mesmo e, portanto, aberto à universalidade. Essa universalidade é proporcionada pelo Estado político adequado e pela vida cultural geral da comunidade, sua arte, religião e filosofia. Só dentro do Estado e da cultura da comunidade nacional é que o universal pode ser realizado. Na esfera estritamente política, o indivíduo particular está relacionado ao Estado por meio da especificidade de sua posição social e de classe dentro da Assembleia de Estamentos [Assembly of Estates]. Embora o mundo moderno tenha realizado, sobretudo, e em muitas direções divergentes, os valores da liberdade e da autonomia moral, Hegel pensou que a Revolução Francesa e o Terror subsequente haviam demonstrado a indesejabilidade da democracia participativa direta no mundo moderno. Mas, ao mesmo tempo, o despotismo, embora esclarecido, era incompatível com a autonomia desenvolvida dentro das instituições econômicas do mundo moderno. Um sistema político representativo que representasse indivíduos não tanto “perdidos na particularidade”, mas relacionados uns com os outros por intermédio das classes ou das propriedades, era a forma mais apropriada de comunidade política no mundo moderno.

Mediante as comunidades parciais do sistema das necessidades e da representação mais básica delas — a classe ou a propriedade — por meio da Assembleia de Estamentos na esfera política, tanto a vitalização do indivíduo característico do sistema das necessidades é diminuída quanto, além disso, os laços cívicos são forjados pelos interesses naturalmente engendrados por fora da esfera econômica. Como diz Kelly: “A política hegeliana é um sistema circulatório saudável e não um pousse-café [digestivo] inerte”.63Ibid., p. 16. A universalidade não é imposta de cima, mas existe em uma relação simbiótica com os interesses dentro da esfera da economia política. Hegel parecia confiante de que isso é de fato como, quando corretamente compreendido, a disposição política do Estado moderno aparecerá aos cidadãos individuais: “O princípio do Estado moderno tem força e profundidade prodigiosas porque permite que o princípio da subjetividade avance até o seu auge no extremo da particularidade autossubsistente [no sistema das necessidades], e, ao mesmo tempo, o traz de volta à unidade substantiva e assim mantém esta unidade no próprio princípio da subjetividade”.64The Philosophy of Right, §266. Essa relação, por mais remota que possa parecer, ajudará a superar alguns dos efeitos banais do sistema das necessidades em termos de sua restrição das forças humanas. O sistema político ajudará, de algum modo, a fazer isso, mas não é o único caminho. Há, além disso, a participação na vida cultural da comunidade, na arte e na atividade religiosa, principalmente,65Ler Briefe von und an Hegel, Bd. 11 (Hoffmeister [ed.], Hamburgo, 1952-4), p. 236. mas também na filosofia, a qual, como sistema de racionalidade, está, pelo menos em princípio, disponível a todos.

Ao mesmo tempo, Hegel argumentava que a vitalização das forças humanas na indústria moderna também deve ser verificada nesse âmbito. Em uma pequena passagem na Filosofia do direito, ele deixou muito clara sua atitude: “Aqueles bens ou características substantivas que constituem minha personalidade privada e a essência universal de minha autoconsciência são inalienáveis e meu direito a eles é imprescindível… Produtos singulares de minha particular habilidade física e mental e de meu poder de agir posso alienar a alguém e posso lhe dar o uso de minhas habilidades por um período restrito, pois, com a força dessa restrição, minhas habilidades adquirem uma relação externa com a totalidade e a universalidade do meu ser. Ao alienar todo o meu tempo, como cristalizado no meu trabalho, e tudo o que produzi, estaria transformando em propriedade alheia a substância do meu ser, a atividade universal e a atualidade, a minha personalidade”.66The Philosophy of Right, op. cit., §67. Hegel não deu nenhuma indicação clara de como ele previa que este tipo de consideração afetaria as relações na indústria. Mas é óbvio que as consequências potenciais desse princípio são muito radicais, quer Hegel as tenha visto ou não, e, na verdade, Marx cita a passagem com aprovação no livro 1 do Capital.67Londres; Moscou, 1954, p. 165.

Assim, podemos ver que os primeiros ideais de Hegel — a restauração de algum senso de totalidade do homem e a restauração de algum senso de comunidade — estão profundamente entranhados na sua narrativa da economia política do Estado moderno. Ele tinha que se interessar pela economia política porque era obrigado a enfrentar os problemas envolvidos na realização de seus ideais no mundo moderno. Ao mesmo tempo, sua visão acerca da economia política foi sempre informada por valores humanistas, os quais foram utilizados em lugares cruciais para apontar o que Hegel considerava como grandes problemas e lacunas na economia política clássica. Era a tese de Hegel que, dentro da economia do Estado moderno e do contexto social e político que a acompanhava, seus valores estavam sendo alcançados — desde que esse nexo de relações fosse compreendido. A realização dos valores não se encontra na superfície, como na sociedade grega. Ao contrário, o homem moderno só pode ser bei sich selbst [por si mesmo] quando tem uma compreensão filosófica completa das forças em ação na sociedade moderna, das relações entre elas e de como elas contribuem para a integridade pessoal e comunitária de uma forma adequada à sociedade moderna. Era a tese de Hegel que tudo isso podia ser encontrado na sociedade moderna, e não era apenas uma fantasia consoladora projetada para o mundo pelos intelectuais helenistas desenraizados. Sua investigação da economia política em todos os seus detalhes é uma das formas pelas quais Hegel tentou justificar essa afirmação.

A pobreza e as contradições da sociedade civil

Na Filosofia do direito, Hegel argumenta que a pobreza é uma característica endêmica e indelével da sociedade moderna. Em outras palavras, é uma característica não apenas de sociedades particulares em estado de declínio ou desintegração, mas precisamente da sociedade quando ela está funcionando bem, quando nas próprias palavras de Hegel “a sociedade civil está em estado de atividade livre”.68The Philosophy of Right, op. cit., §243. A mecânica desse processo é bastante obscura, mas o esboço principal de seu argumento parece ser suficientemente claro. Quando a indústria produz bens para satisfazer a pressão incessantemente crescente dos desejos dos homens, ela pode muito bem descobrir que, em um determinado caso, não há consumidores suficientes para seus produtos.69Ibid., §245. Nessas circunstâncias, os de baixo [the bottom] abandonarão o mercado para uma determinada mercadoria; aqueles que, devido ao refinamento contínuo da divisão do trabalho dentro do sistema das necessidades, dependem inteiramente da indústria que produz esse produto particular serão jogados para a ociosidade. A pobreza resultante dessa crise econômica terá dois lados distintos: o nível real de privação física envolvida e as atitudes sociais daqueles que se encontram desfavorecidos.

Segundo Hegel, o nível de pobreza não é fixado por algum padrão neutro ou objetivo baseado em uma noção de necessidade absoluta ou básica (pace Althusser), mas por alguma noção de necessidade relativa ao que é necessário para ser um membro funcional e integrado de uma sociedade particular, com um padrão de vida e um padrão de consumo específicos: “Quando o padrão de vida de uma grande massa do povo cai abaixo de um certo nível de subsistência — um nível regulado automaticamente como o necessário para um membro da sociedade… o resultado é a criação de uma multidão de pobres”.70Ibid., §244. Em um comentário a esse parágrafo, Hegel dá uma aplicação prática e precisa deste ponto de vista: “Na Inglaterra, mesmo os mais pobres, acreditam que têm direitos; isso é diferente do que satisfaz os pobres de outros países”.71Ibid., adendo ao §244. Em outras palavras, a pobreza é uma privação relativa. Nessa visão, é evidente que Hegel era surpreendentemente moderno em sua visão.

É justamente nesse ponto que a pobreza como estado relativo faz contato com a outra visão de Hegel de que existem atitudes sociais características da pobreza. Por causa de sua privação, os homens ficam isolados das várias vantagens da sociedade — aquisição de competências, educação, acesso à justiça e até mesmo à religião organizada72Ibid., §241. — Todas elas são atividades mediadoras e instituições que ligam os homens à ordem social. Sem esses laços mediadores, os homens se alienam [estranged]: “A pobreza em si não faz do homem uma ralé [rabble]; uma ralé só é criada quando se une à pobreza uma disposição mental, uma indignação interior contra os ricos, contra a sociedade, contra o governo etc.”.73Ibid., adendo ao §244. Quando a sociedade moderna está funcionando normalmente, portanto, segundo Hegel, um grupo de pessoas é pressionado para esse patamar de pobreza internamente postulado, e, dentro desses grupos, é gerado um profundo sentimento de alienação e hostilidade social.

Há amplas evidências de que Hegel esteve muito envolvido com este problema. Rosenkranz relata que Hegel era um ávido leitor da imprensa inglesa, e acompanhou de perto os debates no Parlamento a respeito da Lei dos Pobres. Seu relato acerca da relação de Hegel com Steuart retrata o particular interesse do primeiro pelo problema da pobreza. Entretanto, Hegel não encontrou solução, e admite isso na Filosofia do direito — embora ele não preste atenção suficiente às consequências de sua admissão para a coerência integral de sua teoria da sociedade moderna. No parágrafo 245, Hegel discute várias soluções possíveis para o problema. A primeira é a da caridade organizada, utilizando dinheiro arrecadado de impostos cobrados dos ricos, ou dinheiro arrecadado de fundações privadas de vários tipos; mas o problema criado pela solução caritativa é que, embora a privação física possa ser aliviada dessa forma, ela nada fará para mudar as atitudes sociais que acompanham a pobreza. A pobreza e a falta de trabalho minam o autorrespeito, a autossubsistência e a automanutenção; do mesmo modo que também faz a caridade.74Ibid., §245. Outra possibilidade é que o Poder Público possa tentar criar trabalho [work] estimulando a economia. Entretanto, isso só agravaria a situação a longo prazo, pois o problema tem sido causado, em primeiro lugar, pelo excesso de produção e isso não pode ser curado pelo crescimento econômico. Hegel, escrevendo em 1821, não se debruçou a respeito da possibilidade de criar trabalho que não produzisse bens de consumo, e foi levado a concluir: “Torna-se evidente que, apesar do excesso de riqueza, a sociedade civil não é suficientemente rica, isto é, seus próprios recursos são insuficientes para controlar a pobreza excessiva e a criação de uma ralé miserável”.75Ibid., §245.

Hegel viu que a “sociedade moderna” de sua época gerava tanto pobreza quanto um sentimento de alienação. A única solução que ele foi capaz de conceber foi a colonização, não apenas para a obtenção de matérias-primas, mas para garantir novos mercados para a superprodução de bens da sociedade e para reassentar parte de sua população pobre. Para Hegel, como para Rosa Luxemburg, Lênin e Bukhárin, havia uma conexão interna entre a sociedade capitalista e o imperialismo. A importância disso é que Hegel foi obrigado a concluir que o Estado moderno não podia, de dentro de si mesmo, fornecer uma resposta para talvez o mais grave de seus próprios problemas gerados por si mesmo; portanto, mesmo quando filosoficamente compreendido, não podia prover um lar no mundo para alguns de seus membros. No cerne dessa afirmação havia uma profunda contradição, quando ela é trazida à perspectiva do próprio relato de Hegel acerca da pobreza no Estado moderno. Como argumentou um comentarista recente: “A manifesta incapacidade de Hegel de encontrar uma solução para o problema da pobreza não indica seu fracasso como filósofo social em termos de sua própria filosofia, que tem como objetivo a inclusão sistemática da totalidade, o que significaria a superação de toda contradição e alienação”.76R. L. Perkins, “Remarks on the Papers of Avineri and Poggler”, in The Legacy of Hegel (O’Malley [ed.], Haia, 1970), p. 220.

Assim, de várias maneiras, a economia política foi uma espécie de banco de ensaio para o empreendimento hegeliano. Os valores em que a filosofia de Hegel se baseava se encaixavam mal, ao que parece, com o caráter da economia capitalista. Ao mesmo tempo, o relato de Hegel a respeito da forma como esses valores humanitários poderiam ser alcançados na “sociedade moderna” de sua época foi engenhoso e cheio de insights em todos os momentos acerca do caráter da atividade econômica moderna. Entretanto, seu autoconhecimento não explicou como o problema da pobreza, cuja importância ele reconheceu, poderia ser satisfatoriamente resolvido dentro do Estado moderno, demonstrou muito claramente as limitações, mesmo em seus próprios termos, do empreendimento hegeliano na filosofia social e política.

RAYMOND PLANT é filósofo britânico, nascido em 19 de março de 1945. Lecionou filosofia, jurisprudência e ciência política em importantes universidades do Reino Unido, como a Universidade de Manchester, Universidade de Southampton, Universidade de Oxford (St. Catherine’s College) e King’s College London.

É autor de Social and Moral Theory in Casework (1970), Community and Ideology: An Essay in Applied Moral Philosophy (1974), Hegel (1. ed., 1973; 2. ed., 1983), Political Philosophy and Social Welfare (com H. Lesser e P. Taylor-Gooby, 1979), Philosophy, Politics and Citizenship (com A. Vincent, 1983), Modern Political Thought (1994), Politics, Theology and History (2001), The Neo-Liberal State (2010). Em português, publicou Hegel, sobre religião e filosofia (Editora Unesp, 2000) e o ensaio “Cidadania e transformação política” (David Miliband [org.], Reinventando a esquerda. Editora Unesp, 1997).

Plant também realiza relevante atividade política no Reino Unido. É membro do Labour Party e da House of Lords; atuou como porta-voz do Home Affairs entre 1992 e 1996; presidiu a Comissão da Reforma Eleitoral (redator do Plant Report) e da Comissão Fabiana de Tributação e Cidadania.

Recebeu, em 1992, o título de Barão de Highfield e, em 2003, o prêmio PSA Lifetime Achievement.

Em 2025, Matt Beech e Kevin Hickson organizaram e publicaram o livro The Idea of the Good Society: Essays in Honour of Raymond Plant, em homenagem a Plant.

Rolar para cima