Como os péssimos livros destroem o mundo — resenha

Nova York: Bloomsbury, 2016. 264 pp.
ISBN 978-1-501-31311-0 (brochura); 978-1-501-31312-7 (e-book); 978-1-501-31313-4 (pdf)

Adam Weiner é, desde 1994, professor de língua e de literatura russa na Wellesley College. Em How Bad Writing Destroyed the World, Weiner polemiza com os conceitos de objetivismo e de egoísmo racionalista da autora russo-estadunidense Ayn Rand, os quais, segundo ele, são disfarces para a ideologia neoliberal e suas políticas de shock therapy.

O livro tem por tema o pensamento radical e revolucionário russo do século XIX e sua migração para os Estados Unidos no século XX, onde e quando foi metamorfoseado por Rand.

A tese de Weiner defende que a literatura e a filosofia de Rand pertencem à mesma linhagem da literatura radical política de Nikolái Gavrílovitch Tchernichévski, em particular a iniciada com o livro O que fazer?, de 1862. Porém, enquanto Tchernichévski estava no campo revolucionário russo, Rand produziu uma literatura conservadora, reacionária.

Segundo Weiner, ambos os campos, reacionário/conservador e revolucionário, produziram uma literatura de baixíssima qualidade, tanto na forma quanto no conteúdo. Ambos os campos tinham por finalidade subsidiar, por meio da estética, uma filosofia e um projeto político de transformação da realidade social. Em ambos, os personagens das histórias são sujeitos idealizados e que devem servir de modelo de comportamento, inspirar os leitores.

Weiner recupera a crítica feita ao O que fazer? de Tchernichévski, que havia sido muito mal recebido em seu tempo. Contudo, a influência — maligna na literatura e na política, segundo Weiner — prosperou e serviu de inspiração e de modelo para os círculos radicais e revolucionários russos — alguns deles recorreram ao terrorismo, como Howard Roark, o protagonista de The Fountainhead, de Rand, publicado em 1943. Weiner não esconde seu desprezo por essa literatura — predecessora do realismo socialista — e pelos movimentos políticos que ela teria originado, por exemplo, o bolchevismo.

As análises da história da literatura russa e seu vínculo com a obra de Rand são interessantes — muito boas, na verdade. Entretanto, Weiner parece estabelecer a literatura como o agente da história, e não os sujeitos humanos em sociedade. Assim, faltou embasamento historiográfico ao livro. Ademais, Weiner falha em justificar historicamente a metamorfose da literatura radical russa em literatura conservadora e reacionária em solo estadunidense. O que aconteceu nesse processo? Qual a razão para tal metamorfose? Weiner não oferece resposta — pelo menos, não uma resposta consistente. Sua justificativa é de caráter subjetivo: a literatura e a filosofia de Rand eram frutos do rancor pelas consequências sofridas por ela e por sua família depois da Revolução Russa de 1917, em particular a de outubro.

Rand teria sido a inspiradora, ou arquitetado a forma literária, da política neoliberal contemporânea, que seria depois aplicada pelo economista estadunidense Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve entre 1987 e 2006 e membro do círculo de Rand — ironicamente batizados de coletivistas. Rand advogou, por meio da literatura e de alguns ensaios filosóficos, a teoria do objetivismo e do egoísmo racionalista e ético, sobretudo em The Virtue of Selfishness, publicado em 1964. O neoliberalismo teria sido, argumenta Weiner, uma aplicação da economia e da política do objetivismo e do egoísmo racionalista de Rand — isto é, a literatura precedeu a política econômica neoliberal, moldando a subjetividade da sociedade antes de ser testada na prática.

Weiner apresentou interessante exame das críticas de Fiódor Dostoiévski e Vladímir Nabókov à obra de Tchernichévski, feitas por meio de dois romances, Os demônios, de 1871-2, e O presente, de 1935-7 e 1952, o último romance em russo de Nabókov.

O capítulo sobre Nabókov é interessantíssimo por oferecer um contraponto à figura e aos rumos da vida e da obra de Rand. Nabókov, assim como Rand, não era simpático à União Soviética e ao bolchevismo — ambos se exilaram nos Estados Unidos em decorrência da Revolução de Outubro de 1917. Porém, diferentemente de Rand, Nabókov não viveu seus anos de exílio remoendo seu remorso contra os soviéticos, utilizando-se deles como arrimo para justificar seus infortúnios. Pelo contrário, ele deixou como legado uma obra teórica e literária de grande valor em russo e em inglês, elevando o espírito dos povos por onde passou. Rand, por sua vez, adubou seu remorso para produzir sua obra literária. Outra diferença notável entre Nabókov e Rand destacada por Weiner se refere à fluência na língua inglesa. Nabókov se apropriou do idioma como se ele fosse sua língua materna, enquanto Rand jamais adquiriu fluência, cometendo em seus livros muitos erros, que geram estranhamento à narrativa e aos diálogos dos personagens.

O último capítulo, no qual Weiner examinou em detalhe a obra de Rand, é repleto de chistes do autor, tanto sobre os livros quanto sobre a biografia da autora. Rand era uma chefe de seita e que pregava sua filosofia como uma profetisa autoritária. Seu pensamento objetivista e “racionalista” era rico em contradições e culs-de-sac, não por ser incompleto e inconcluso, mas pela incapacidade da própria autora de os identificar, ou de os admitir. Rand era movida não pelo excessivo racionalismo e/ou objetividade, mas por um ódio apaixonado pelo Estado e pelas classes trabalhadoras, produto de seu rancor para com as expropriações sofridas por sua família durante a década de 1920 na União Soviética. Seu racionalismo era, de fato, irracional, seu objetivismo, emocional, baseados não nos fatos, na realidade social e histórica, mas em uma idealização de si mesma e do que deveria ser o mundo. Portanto, Rand queria fazer com que suas obras de ficção assumissem o lugar da realidade. O efetivo produto de sua obra — as políticas econômicas neoliberais de Greenspan — foi a crise econômica mundial de 2008. Assim, quando postas em prática, a literatura e a filosofia de Rand resultaram em um desastre econômico, político e social, da mesma forma em que, segundo Weiner, o sujeito revolucionário e a revolução idealizados por Tchernichévski.

Em síntese, o ideal de mundo de Rand não passa de mais uma utopia, o qual, quando realizado, se efetiva como distopia.

E os péssimos filmes?

Ao concluir a leitura de How Bad Writing Destroyed the World, enfim me dispus a assistir ao The Passion of Ayn Rand, filme que, há um tempo, estava na lista Assistir Mais Tarde.

Dirigido pelo cineasta britânico Christopher Menaul, Passion, de 1999, é uma cinebiografia da relação intelectual, e sexual, entre Rand e Nathaniel Branden (Eric Stoltz) — parceiros no amor e nos negócios editoriais — baseada no livro homônimo de Barbara Branden, publicado em 1986.

Além de ser um filme muito bom e com grande elenco — Helen Mirren interpreta uma Rand tragável, fazendo com que a audiência seja capaz de simpatizar com a pouco carismática autora —, o posicionamento do diretor perante a obra e a vida de Rand é sutil, perceptível em brevíssimas e elusivas falas, bem como por meio da música tema que encerra o filme, “Love Is, Love Is Not”, interpretada pela cantora canadense Shirley Eikhard e composta pelo músico estadunidense Jeff Beal.

O filme narra a aproximação e a ruptura melodramática entre os Rand e os Branden. Inicialmente uma relação entre mestre e pupilos iniciada nos anos 1950 — os Branden eram um casal de namorados leitores e admiradores da obra de Rand, contudo, a força da influência da autora sobre eles foi tamanha que se casaram por sugestão dela —, em pouco tempo, Rand e Nathaniel Branden se tornam amantes e sócios, fundando a Nathaniel Branden Lectures, depois Nathaniel Branden Institute, organização dedicada à difusão e à defesa da obra e da filosofia de Rand.

As deixas da opinião do diretor sobre a obra de Rand aparecem em pelo menos duas falas, que parafrasearei de memória. Em diálogo entre Barbara Branden (Julie Delpy) e Richard (Tom McCamus), este diz sobre a obra de Rand: “São só histórias. A vida não é assim”. E, por último, Frank O’Connor (Peter Fonda), o marido escanteado, alcoólatra e depressivo de Rand, em diálogo com Barbara Branden, diz sobre os livros da esposa: “Eu nunca entendi nada [do que ela diz]”. As duas falas revelam algo que Rand e seus fãs têm dificuldade em assumir: suas histórias são só histórias, e sua filosofia não faz sentido porque não tem base na realidade, mas em uma vontade do que seja o mundo, um mundo habitado por milhões de Rands, o que é naturalmente inviável.

Capa do DVD do filme The Passion of Ayn Rand.

A obra de Rand também foi objeto de adaptações cinematográficas. Uma delas em 1949, The Fountainhead, prestigiada por Gary Cooper e Patricia Neal entre o elenco principal. Décadas mais tarde, a humanidade foi esteticamente agredida pela trilogia Atlas Shrugged, de 2011-4. Além da total inverossimilhança das situações e dos diálogos — dispensando maiores análises —, a produção teve dificuldade de manter o elenco principal de um episódio ao outro. Assim, os protagonistas da história são interpretados por atores diferentes em cada episódio, o que aumenta o estranhamento, e o ridículo, do projeto. A trilogia está hoje bem estabelecida entre os melhores piores filmes de todos os tempos.

O que aproxima as adaptações Fountainhead e Atlas é um elemento também marcante em Passion: a permanente tensão sexual entre os personagens. Porém, em Passion, a tensão tem meios de fruição, e com considerável liberdade. Por sua vez, em Fountainhead e Atlas, adaptações dos livros de Rand, a tensão sexual é sempre bloqueada, precisando ser sublimada por meio do workaholismo dos protagonistas, Howard Roark (Gary Cooper) e Dagny Taggart (Taylor Schilling, Samantha Mathis e Laura Regan), ambos dedicados a construções de engenharia e de arquitetura que remetem à forma do falo — arranha-céus, ferrovias e trens, tendo sempre que ser os mais altos, os mais rápidos, resistentes e potentes, e que, por motivos insólitos e inverossímeis, são boicotados pelo Estado e pela sociedade coletivista.

Cartaz do filme The Fountainhead.

A obra de Rand nada mais é do que uma racionalização, sob a forma literária, da perpetuação das relações sociais capitalistas. A autora sabe seduzir seu leitor o identificando com os protagonistas mavericks, sempre nadando contra a corrente em uma sociedade de massa manipulada pelas lideranças estatistas e coletivistas. Só o leitor e os protagonistas de suas histórias são indivíduos plenos e criativos — os Robinson Crusoe do novo século —, que só não realizam seu potencial humano por serem restringidos pelo Estado coletivista e por uma sociedade dominada pela ideologia irracional do altruísmo. Em suas histórias há sempre um culpado externo, um bogeymen — a carga tributária, a legislação trabalhista, a burocracia do Estado e os socialistas-coletivistas — tentando atrapalhar as iniciativas e os empreendimentos capitalistas dos protagonistas e dos leitores dos romances de Rand.

Rand produz uma inversão das lutas de classes. Em seu mundo, a classe explorada são os capitalistas, que tem seu capital, sua iniciativa e sua criatividade expropriados pelo Estado coletivista e pela massa manipulada de trabalhadores.

Apesar de se considerarem tão dissidentes, tão out of the box, Rand e seus seguidores recaíram, e ainda recaem, em todas as armadilhas da sociabilidade capitalista: os fetiches do dinheiro e da mercadoria, o mito do indivíduo independente da sociedade, entre outras. Menaul, diretor de Passion, expõe isso na cena final do filme. Nela, Rand, em uma sessão de Q&A depois de uma conferência, é perguntada por alguém da audiência: “O que é o Amor?” — com A maiúsculo mesmo. Rand responde que o Amor é algo que se conquista pela realização de grandes feitos, algo que se tem, que pode ser apropriado, ou obtido por aqueles que fizeram por merecer. Menaul responde a Rand com a música tema do filme, “Love Is, Love Is Not”:

Love is something you give
Love’s not something you keep
It’s a maze, a haze, complicated and sweet

Never know when it is, but you know when it’s not
Over time, define, realize, what you’ve got

Love is illusive feeling, is the greatest reward
Can’t be seen, but its touch you can’t ignore

Love is something you know, but you don’t understand
Love is fundamental, dangerous and gentle
Love is not what we choose, love is what we do

Das microsseitas à Praça dos Três Poderes

A formação de seitas dos mais variados gêneros, a publicação de livros e a produção de filmes exóticos não são peculiaridades só dos Estados Unidos. O Brasil nas últimas décadas se tornou território de importação dessas peculiaridades yankees: tradução de literatura de ficção e não ficção de baixa qualidade, crônicas e filosofismos políticos e econômicos ideologicamente enviesados, desprendidos não só de sua própria história e realidade nacional, mas também da realidade brasileira. (É bem verdade que a cultura estadunidense também tem seus méritos na literatura, na música, no cinema, nas ciências etc. Entretanto, eles não são objetos de importação em massa.)

A ideologia e o ideal de mundo de Rand têm sido traduzidos e publicados no Brasil, além de ter seus divulgadores nos grandes meios de comunicação, rádio e internet, principalmente. Alguns se organizaram em partidos e elegeram representantes nas câmaras, assembleias e no Congresso. Seus slogans são o Estado mínimo, o fim dos impostos, o fim dos sindicatos, o fim da legislação trabalhista. Seu ideal de mundo consiste em um retorno ao estado de natureza, no qual prosperará e vencerá os mais fortes, cada um com sua propriedade, suas famílias e suas armas, contra o mundo.

Seu ideal é evidentemente irrealizável, pois não se baseia na realidade do mundo, mas em princípios irracionais e sem bases empíricas sobre o que foi e o que pode vir a ser o mundo. Porém, seus esforços para realizar sua visão de mundo são reais, concretos, bem como são seus resultados: crises econômicas sistêmicas, empobrecimento geral da população, fortalecimento do aparelho de repressão e vigilância do Estado. Seu ideal é uma distopia que não está por vir, mas que está em curso no presente. Seus bad writings foram as sementes que estão destruindo o mundo. Quais serão as sementes que podem resgatá-lo, ou, ao menos, acionar o alarme contra incêndio? Quem poderá cortar o rastilho antes que a centelha chegue à dinamite?

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