“A mãe e a puta, recém-restaurado, ainda extraordinário”, de Richard Brody — tradução

The New Yorker, Nova York, 3 out. 2022.
ISSN 0028-792X

Tradução de Felipe Cotrim

O grande filme pós-Maio de 1968 de Jean Eustache é radicalmente conservador, mas arde com o espírito da juventude.

A mãe e a puta, estrelando Jean-Pierre Léaud e Françoise Lebrun, às vezes parece uma espécie de assassinato freudiano da Nouvelle Vague francesa. (Fotografia cortesia da Janus Films.)

Uma das principais participações na edição deste ano do New York Film Festival (que acontece de 30 de setembro a 16 de outubro) é um filme que foi exibido lá em 1973, A mãe e a puta [La Maman et la putain] (5 a 6 de outubro). Dirigido por Jean Eustache, o filme tem sido muito difícil de assistir nos últimos anos — embora lançado nos Estados Unidos em VHS, foi só no final de 2021 que o detentor dos direitos, o filho de Eustache, Boris, concordou com sua restauração, relançamento nos cinemas e eventual lançamento em DVD. Em 1973, o filme ganhou o Grande Prêmio do Júri em Cannes e, na ocasião, foi aclamado imediatamente como um clássico, mas é um clássico elusivo, independentemente de sua disponibilidade. É o grande filme pós-Maio de 1968 — com referência não ao ano civil, mas aos eventos marcantes na França e aos jovens marcados por eles. É um filme radical, mas seu radicalismo é irônico, evasivo, porque, longe de incorporar os ideais das Jornadas de Maio, A mãe e a puta é radicalmente conservador.

A mãe e a puta é um filme avassalador. É avassalador em sua duração (pouco mais de três horas e meia) e em sua intensidade emocional — é uma obra-prima devoradora que parece consumir a si mesma ao passar pelo projetor. É um filme de raiva e autopunição, de arrogância e humilhação e, finalmente, de ironia feroz sobre prazer e poder, desejo e submissão. (Não vou me preocupar muito com spoilers; o filme é tão vasto que, independentemente de qualquer descrição, deixa mundos inteiros para serem descobertos ao assisti-lo.) Entretanto, para um filme que arde com o espírito da juventude, seu senso de forma cinematográfica é surpreendentemente tradicional. O que é original em seu estilo é a profusão de diálogos, que supera em quantidade, densidade e tom até mesmo as conversas em filmes contemporâneos de Éric Rohmer (dezoito anos mais velho que Eustache). Onde a linguagem cinematográfica de Rohmer é dialética, a de Eustache é torrencial. Os personagens de A mãe e a puta não dialogam muito entre si, ou mesmo uns com os outros, mas expõem suas almas verbalmente e despejam confissões por meio de solilóquios — em especial o protagonista, Alexandre (Jean-Pierre Léaud). Essas confissões são, em grande parte, confissões de valores tradicionais, reacionários, condenando a nova moralidade dos anos 1960 e os valores democráticos da modernidade tecnocrática. A mãe e a puta progride com ironia ao recuar tanto em sua estética quanto em sua substância.

Em A mãe e a puta, não há mãe nem puta. Há uma mulher chamada Marie (Bernadette Lafont), que nutre e mima Alexandre; e outra, chamada Veronika (Françoise Lebrun), que faz muito sexo casual e se orgulha disso. O título é um sarcasmo cínico e machista direcionado a elas; as quais não são as protagonistas do filme, mas as duas mulheres entre as quais o protagonista se encontra preso em um afiado triângulo amoroso. Como todo o filme, o título sarcástico incorpora a perspectiva de Alexandre. Ele parece ter cerca de 25 anos e é membro da classe não trabalhadora — ele é um intelectual elegante, um escritor que raramente escreve, mas que vai diariamente ao famoso café Les Deux Magots (localizado à margem esquerda, Rive Gauche, de Paris) para ler e passa o resto do tempo filosofando com amigos e pegando mulheres. Alexandre mora no apartamento de Marie, que está perto dos trinta, administra uma pequena loja de roupas descoladas e sustenta financeiramente Alexandre em suas aventuras cretinas [flibbertigibbet]. Veronika, uma enfermeira de 25 anos, mora em um quarto apertado e sórdido no hospital no qual trabalha em Paris. Alexandre a vê em um café e a persegue pela rua para conseguir seu nome e número de telefone. Enquanto ele busca um relacionamento com Veronika, Marie supera seu ciúme ressentido e a admite em casa.

Alexandre (Jean-Pierre Léaud) a caminho do icônico Les Deux Magots.

Há uma terceira mulher, não menos essencial para o filme. Ela só aparece na tela por duas longas cenas, mas eu a considero o centro do filme. Ela não está no título, mas, em vez disso, está escondida à vista de todos. Na primeira sequência estendida do filme, que dura mais de dez minutos, Alexandre acorda cedo e pega emprestado o carro de um vizinho para perseguir uma estudante universitária chamada Gilberte (Isabelle Weingarten), uma ex-namorada que o deixou e que ele encontra e confronta — na calçada, em um banco de parque, em um café (onde ela paga a refeição dele) — em uma tentativa de dominá-la por meio de uma descarga frenética de retórica, sofismas e ardor filosófico na esperança de persuadi-la a se casar com ele naquele mesmo dia. Essa sequência relâmpago revela o desespero romântico de Alexandre, o discurso intelectual torrencial e o tradicionalismo essencial. Eles se encontram novamente, por acaso, alguns dias depois. Ela diz a ele que vai se casar com outra pessoa, e Alexandre executa outra série de artimanhas dialéticas para convencê-la a desistir e completa com uma acusação amarga de que ela está se casando por dinheiro e status, um lamento sociológico de que ela teve a vantagem de ser criada em uma época em que aprendeu bom francês e boa moral, e, de modo perverso, sugere que Gilberte deveria ter uma filha a qual, aos dezoito ou dezenove anos, poderia muito bem se apaixonar por ele.

Sob o disfarce do ménage à trois libertino prometido pelo título — e que, alerta de spoiler, acaba se concretizando —, Eustache entrega uma obra de reação radical presciente enquanto Alexandre ataca a sociedade francesa em geral, acusando que o conservadorismo corporativo dela é de longa data e que seu progressismo igualitário do final dos anos 1960 está impondo uniformidade e degradando valores estéticos e morais tradicionais. Alexandre combina anarquismo e autoritarismo, com uma nostalgia descarada pelo poder. Na companhia de um amigo não identificado (Jacques Renard), que o presenteia com um estoque de memorabilia nazista, Alexandre — que bate à porta do amigo com o código de cinco toques para “Algérie française”, um slogan que apoia a ocupação colonial francesa da Argélia — relembra com saudade a época em que as mulheres francesas desmaiavam por homens em uniformes militares. Agora, diz Alexandre, elas se apaixonam por “executivos”, “profissionais”. Com A mãe e a puta, Eustache apresenta, por meio de Alexandre, uma história moderna da era pós-Maio de 1968 do libertino despreocupado como uma história de poder, de desejo existindo só para ser satisfeito por quaisquer meios necessários. É um drama de restrição — a restrição do outro para se conformar com os próprios desejos —, e, como tal, é um drama de crueldade, de sadismo implícito, complementado com suas manifestações políticas mais abjetas.

Na verdade, Alexandre é um incel primordial, embora faça muito sexo. O filme dá vazão total às suas ideias regressivas em sua esmagadora peça central, uma cena que expõe a ferida decisiva de sua rejeição por Gilberte — uma cena focada nela, mas da qual ela está ausente. O filme inteiro se baseia na energia negativa dessa rejeição. Tudo o que se segue, desde seu relacionamento com Veronika até a apresentação dela a Marie, é o esforço de Alexandre para compensar sua opção de reserva. O buraco negro desse desastre ocupa uma cena colossal que forma o núcleo do filme: um encontro entre Alexandre e Veronika no Café de Flore, à época, o “escritório” de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Esse encontro é, aparentemente, uma afronta descarada ao feminismo e às mulheres. Nele, Alexandre conta a Veronika sobre seu relacionamento com Gilberte, dizendo que foi violento, admitindo que ele a agrediu com tanta força que “quebrou alguma coisa”. Em segundo lugar, Alexandre, que já havia sugerido casualmente que os abortistas são assassinos, denuncia ainda mais Gilberte por tê-lo trocado por um homem que a ajudou a fazer um aborto. “Os abortistas são os novos Robin Hoods, os novos cavaleiros da Idade Média”, diz Alexandre, com sarcasmo mordaz. “Eles não protegem mais os fracos e os indefesos, eles libertam as mulheres da coisa vil em suas barrigas. Os bisturis substituem as espadas, as sondas substituem os sabres, e as mulheres sempre se apaixonam por seus libertadores.” Usando uma das poucas, mas reveladoras, pinceladas cinematográficas do filme para enfatizar a importância dessa cena para Alexandre, Veronika, e para si mesmo, Eustache a filma com os personagens frente a frente, olhando e falando diretamente à câmera.

Com uma atenção apurada a esses elementos, A mãe e a puta se torna uma espécie de filme de terror, uma revelação das monstruosidades que Eustache observou, imaginou, e talvez até tenha sentido. De qualquer modo, o filme é, em grande parte, autobiográfico. A despeito de sua extensão, Eustache o escreveu e o filmou muito rápido por estar em uma situação similar à de Alexandre. Como Luc Béraud — um dos assistentes de Eustache na filmagem — detalha em suas memórias, Au Travail avec Eustache [Trabalhando com Eustache], à época, o diretor morava com uma lojista chamada Catherine Garnier [a quem o filme é dedicado], estava em um relacionamento com uma enfermeira chamada Marinka Matuszewski e já havia tido um relacionamento com uma mulher que o havia deixado: Françoise Lebrun, que interpreta Veronika.

A erupção de monstruosidades emocionais e sociais do filme é inseparável de sua visão calorosa, terna e compassiva da vida cotidiana de jovens comuns, como Marie, cujo senso de estilo está ligado à rotina monótona de seus dias na loja, ou Veronika, uma enfermeira dedicada que afoga seu torpor em rápidos encontros sexuais. Ambas as mulheres se divertem, são atraídas e ficam fascinadas com as explicações intelectuais de Alexandre sobre, por exemplo, imaginar repentinamente uma rodovia como “o vestígio de uma civilização antiga”, suas reflexões sobre os filmes de Murnau ou suas descrições da clientela colorida de um café ao amanhecer. Ao comer no luxuoso e bem decorado restaurante Le Train Bleu com Veronika — com o dinheiro que pegou emprestado de Marie —, ele expressa, com seus gostos epicuristas, seus ressentimentos culturais e de classe. “Não ter dinheiro não é motivo para comer mal”, diz ele. “Quando criança, eu roubava livros. Eu dizia que a pobreza não é motivo para não se cultivar.” Esse monólogo continua com um pivô cinematográfico astuto: “Há pessoas ricas o suficiente para não fazer nada, mas que fazem coisas. Elas até fazem coisas boas. Filmes, por exemplo”.

A mãe e a puta às vezes parece uma espécie de assassinato freudiano da Nouvelle Vague francesa, com a qual Eustache se associou pessoalmente. Nascido em 1938, ele se mudou para Paris aos vinte anos, assistia a filmes e frequentava os escritórios da Cahiers du cinéma, nos quais sua esposa à época, Jeanne Delos, era secretária. Béraud lembra que, “embora tenha escrito apenas dois artigos, Eustache fazia parte da clique”. O elenco de A mãe e a puta incorpora as principais tradições modernas do cinema francês, contra as quais o filme se revoltava radicalmente. Léaud ganhou fama como ator adolescente em Os incompreendidos [Les Quatre Cents Coups], de François Truffaut, o filme que, em 1959, colocou a Nouvelle Vague no mapa do cinema mundial; e entrou em outra dimensão cinematográfica em 1966 por meio do Masculino, feminino [Masculin, féminin], de Jean-Luc Godard. Naquele filme, o personagem de Léaud engravida a namorada (Chantal Goya), que pensa em fazer um aborto ilegal e perigoso. (Léaud também estrelou o longa-metragem de 1966 de Eustache, O Papai Noel tem olhos azuis [Le Père Noël a les yeux bleus], que Godard financiou parcialmente). Lafont estreou em um curta-metragem de Truffaut e estrelou em um longa-metragem dele de 1971, Uma jovem tão bela como eu [Une Belle Fille comme moi], e em vários dos primeiros longas de Claude Chabrol, além de atuar em Out 1, de Jacques Rivette, filme de quase treze horas de duração. Quanto a Weingarten, ela só havia participado de um filme — como a estrela de Quatro noites de um sonhador [Quatre Nuits d’un rêveur], de Robert Bresson, um dos heróis artísticos mais antigos da Nouvelle Vague.

Françoise Lebrun, Jean-Pierre Léaud e Bernadette Lafont em Cannes.

Filmando em preto e branco, sóbrio e austero, em apartamentos apertados, carros minúsculos, cafés sombrios e ruas monótonas, Eustache tira, de modo cáustico, o brilho da arte erudita, da poesia de rua e dos sentimentos refinados do reino intelectual parisiense que a Nouvelle Vague romantizou. Godard, que começou como uma espécie de anarquista de direita em um estilo semelhante ao de Eustache, se tornou um esquerdista cada vez mais ortodoxo, embora abnegado. Truffaut, que também era de esquerda, pertencia ao conspícuo beau monde [a elite fashion] parisiense. Rohmer, um direitista, encheu seus filmes com a cultura digna e respeitável. Rivette adaptou Diderot, Racine e Balzac. Eustache enche A mãe e a puta com canções populares da França pré-guerra, deleita-se com a exaltação banal de um pregador de rádio, zomba de Jean-Paul Sartre e de seu maoismo burguês, e se mostra nostálgico em relação a épocas passadas e cruéis, com elogios aos duelos e à afirmação descarada de que “devemos encorajar a injustiça”.

Ao remover o verniz gentil que havia sido associado à Nouvelle Vague, o que Eustache expôs foi também uma experiência pessoal, embora de modo indireto. Há um subtexto crucial, ou melhor, um subfilme subjacente ao A mãe e a puta: o Numéro zéro, filme de 1971 do próprio Eustache. O longa consiste em uma entrevista extensa com a avó dele, Odette Robert, a qual fala sobre os rigores e os horrores de sua vida em um vilarejo perto de Bordeaux no início do século XX — desde a pobreza e a doença, o crime e a humilhação, até as opressões da ocupação alemã e a devastação emocional da vida cotidiana que acompanhava tudo isso. Para Eustache, o furor subjacente da vida de sua avó também representava uma riqueza de experiência inigualável na França moderna e progressista. A vida aparentemente terrível de Odette Robert é o torrão da memória coletiva, o solo histórico do qual a França moderna surgiu — com seus confortos e refinamentos, suas presunções de progresso econômico e social — enquanto o pavimentava e o ocultava com as próprias obras de arte que incorporam esse progresso cultural. A mãe e a puta surge como uma reprovação viva à referencialidade cinéfila dos cineastas da Nouvelle Vague — a sugestão de que eles se voltaram para o cinema a fim de se afastar de realidades terríveis.

Esfregue qualquer um de nós — nós, homens —, diz Eustache, e você encontrará um monstro à espreita. Esfregue-nos com força suficiente e nós lutaremos. E, no combate eterno entre homens e mulheres, a única maneira de nos vencer é nos quebrar. O final de A mãe e a puta, com sua mistura de vulnerabilidade e de poder feminino, é o roteiro para essa conquista definitiva. O final apresenta um monólogo heroico e autoflagelante de Veronika, proferido, de modo arrasador, por Lebrun em duas sequências longas — uma delas com mais de cinco minutos. O discurso, em sua substância sanguínea e inflamada, vaporiza o mito da frivolidade libertina pós-Maio de 1968 e incorpora, em tempo real, algo como uma contrarrevolução de uma mulher só. Entretanto, essa é apenas a preparação para um final poderoso e emocionalmente violento: a trilha sonora é preenchida com a risada majestosamente zombeteira de Veronika quando ela aceita o pedido de casamento de Alexandre e o empurra para um canto, onde ele se acovarda como um garoto castigado que finalmente recebe sua punição. Seu momento de triunfo é seu momento de submissão final. Ela fará dele um homem.

A mãe e a puta aparece como uma contraparte fragmentada do documentário de 1969 de Marcel Ophüls, A tristeza e a piedade [Le Chagrin et la pitié], o qual destruiu o mito da França dos tempos da Segunda Guerra como uma nação de resistentes em meio a alguns colaboradores isolados, e também revelou a presença contínua da extrema direita impenitente na França de hoje. Eustache, ao destruir a fachada do progresso, a visão da juventude francesa como uma brigada de intelectuais progressistas de espírito livre e a ilusão do mundo pós-Maio de 1968 como uma aventura sexualmente despreocupada de crianças floridas, revelou a resistência contínua do passado opressivo e violento do país — mas, longe de depreciar a persistência desse passado na França, Eustache retratou feições selvagens e insaciáveis da história francesa como a verdadeira fonte da melhor inovação artística do país, a começar pela dele próprio.

Jean Eustache durante filmagem de A mãe e a puta.

RICHARD BRODY contribui, desde 1999, com crítica de cinema para a The New Yorker. Em sua coluna, The Front Row, revisou blockbusters, como Top Gun: Maverick; filmes estrangeiros, como Parasita; independentes, incluindo Lady Bird; e documentários, como Let It Be, filme de 1970 acerca dos Beatles. Entre seus ensaios, destacam-se “The Best Movie Performances of the Century So Far” e “Sixty-Two Films That Shaped the Art of Documentary Filmmaking”. Brody também contribuiu com artigos a respeito de Jean-Luc Godard and Wes Anderson. É autor de Everything Is Cinema: The Working Life of Jean-Luc Godard e trabalha em um livro acerca da duradoura influência da Nouvelle Vague francesa.

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