A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Friedrich Engels — resenha

Trad. de Bernhard Schumann. Supervisão, apres. e notas de José Paulo Netto. São Paulo: Boitempo, 2010. 388 pp. (Marx-Engels).
ISBN 978-85-7559-104-8 (brochura)

O texto a seguir é baseado nas notas preparadas para o Ontocast gravado em 29 de novembro de 2024.

Apresentação e visão geral

Uma das principais obras de toda a vida de Friedrich Engels, editada e traduzida até hoje, o A situação da classe trabalhadora na Inglaterra teve reconhecimento e impacto imediato à época e hoje está presente nas bibliografias dos cursos de graduação e pós-graduação em humanidades e em cursos de formação de militantes políticos.

Marcante por sua habilidade narrativa, leitura do espaço urbano, pesquisa bibliográfica e de campo sobre as condições de vida e trabalho das classes trabalhadoras, o Situação estuda os impactos econômicos, sociais e políticos da Revolução Industrial, como ela surgiu e desmontou a sociabilidade precedente, a antiga economia de guildas, artesãos e aprendizes, e favoreceu a emergência de uma nova dinâmica de classes sociais na história, a da burguesia e do proletariado, do grande capital e das classes trabalhadoras.

Pode-se ler o Situação como um livro de história econômica, social, urbana e do trabalho, sociologia e antropologia. Ele pode ser tudo isso, e nada disso também, uma vez que muitas dessas disciplinas científicas não existiam à época. Mas ele certamente é um modelo para os pesquisadores contemporâneos dessas áreas, os marxistas em especial, mas não só eles.

O que Engels indiscutivelmente realizou em A situação foi uma síntese e sistematização da literatura sobre o tema, que, até então, o tratava de forma fragmentária, tanto no ponto de vista das classes trabalhadoras quanto da economia capitalista industrial. Engels apresentou nesse livro uma visão panorâmica da questão das classes trabalhadoras e do capitalismo industrial, sua evolução e possíveis rumos.

Obra pioneira do que viria a ser conhecido como marxismo, Engels trabalha com muitos dos temas que seriam associados e se tornariam clássicos em textos marxistas, como lutas de classes, a instabilidade econômica e social inerente ao capitalismo, a burguesia como criadora de seus coveiros, a necessidade da revolução socialista como solução para as contradições capitalistas, entre outros. Segundo Eric Hobsbawm,1Eric Hobsbawm, “Introduction”. In: Friedrich Engels, The Condition of the Working Class in England: From Personal Observation to Authentic Sources. Londres: Granada, 1979, p. 9. o Situação foi “a primeira tentativa em grande escala de aplicar o método marxista ao estudo concreto da sociedade, e provavelmente a primeira obra de Marx ou Engels na qual os fundadores do marxismo consideraram de valor suficiente para merecer preservação permanente”.

¶ Este livro, novamente oferecido à atenção dos leitores, foi publicado pela primeira vez no verão de 1845. E, tanto nos seus méritos como nos seus defeitos, traz a nítida marca da juventude de seu autor. Na época, eu tinha 24 anos; hoje, com três vezes aquela idade, releio esta obra juvenil e nela nada encontro de que possa me envergonhar. Não tenho nenhuma razão para apagar este signo da minha mocidade e o reapresento ao leitor sem modificações.

— Friedrich Engels, “Prefácio à edição alemã de 1892” do A situação da classe trabalhadora na Inglaterra

Embora publicado há 180 anos, o Situação examina e explica as origens de muitos dos temas que nos são contemporâneos, como os impactos ambientais e sanitários decorrentes da Revolução Industrial, a superexploração da natureza, a poluição do ar e dos rios, a devastação das florestas, as endemias e as pandemias. Também não ignora os problemas relativos à saúde mental das populações urbanas e a dependência química, como o alcoolismo, a questão das mulheres e dos filhos das classes trabalhadoras.

Antecipa alguns conceitos da crítica à economia política, os quais seriam polidos por Marx no Capital — embora Engels, no Situação, os apresente em sua dinâmica social, e não sob a forma de categorias filosóficas —, por exemplo, acumulação ampliada de capital, a concentração do capital por meio da apropriação do trabalho, proletarização da sociedade, o exército industrial de reserva, a periodicidade das crises econômicas, a renda da terra no ambiente urbano, como os aluguéis residenciais, entre outros.

Por fim, concluiu Hobsbawm,2Ibid., p. 17.

O livro de Engels continua sendo hoje, como era em 1845, de longe o melhor livro sobre a classe trabalhadora do período. Os historiadores contemporâneos o consideraram, e continuam a considerá-lo, como tal, exceto por um grupo recente de críticos, motivados por aversão ideológica.3Hobsbawm se refere a William Otto Henderson, historiador econômico inglês especialista em história contemporânea da Inglaterra e da Alemanha e autor de uma biografia e de uma coleção de ensaios sobre Friedrich Engels, além de tradutor de uma edição crítica do A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. As divergências entre Hobsbawm e Henderson não se limitam à obra de Engels, mas também envolvem o debate historiográfico acerca do padrão e da qualidade de vida dos trabalhadores do século XIX. Ele não é a última palavra sobre o assunto, pois 125 anos de pesquisa aumentaram nosso conhecimento sobre as condições da classe trabalhadora, especialmente nas áreas com as quais Engels não teve contato pessoal próximo. É um livro de seu tempo. Mas nada pode tomar seu lugar na biblioteca de todo historiador do século XIX e de todos os interessados no movimento da classe trabalhadora. Ele continua sendo uma obra indispensável e um marco na luta pela emancipação da humanidade.

Teses originais

Engels não foi pioneiro no estudo e na publicação de textos sobre a condição de vida das classes trabalhadoras. A Inglaterra já tinha tradição na literatura a respeito dos operários dos mais diversos ramos. Mas o texto engelsiano se diferencia dessa literatura por algumas teses originais.

☛ A conclusão revolucionária o distingue dos demais militantes e das demais organizações socialistas, reformistas e operárias. Para Engels, a classe trabalhadora tinha potencial revolucionário, apresentava autonomia política e era sujeito da própria história, isto é, não se tratava de um grupo que precisaria ser tutelado, guiado por arquitetos sociais iluminados. O proletariado não é uma classe que sofre (predicado da história), ela age (é sujeito da história), e age em oposição aos interesses das classes dominantes, das burguesias.

☛ As classes trabalhadoras são portadoras de uma causa universal, a causa da humanidade, do interesse comum do gênero humano. Isso implica o comunismo como problema da humanidade — motivo pelo qual o marxismo humanista se inspira e se identifica com os textos do jovem Engels.

☛ Apresenta a Revolução Industrial e o capitalismo como uma nova fase histórica, produtor de novos conceitos e de um novo ser social, o ser social sob o capital, mais precisamente sob o capitalismo industrial.

☛ A pesquisa e a exposição de Engels no Situação foi construída a partir de uma nova moldura teórica, a concepção materialista da história, ainda que incipiente, mas que já havia sido apresentada por Engels em alguns de seus artigos de juventude, como a resenha crítica ao Passado e presente, de Thomas Carlyle, publicada no início de 1844.

Pontos fracos

Nenhuma obra é perfeita, e o Situação não é uma exceção a essa regra. Entre alguns de seus pontos fracos, destacam-se:

☛ A introdução apresenta uma digressão idílica do mundo pré-industrial na Inglaterra, possível influência da visão romântica de Passado e presente, de Thomas Carlyle, e The Manufacturing Population of England, de Peter Gaskell. Esse é um dos aspectos do Situação que foram superados pela historiografia da econômica e social da Inglaterra.

☛ Engels parece naturalizar traços negativos dos irlandeses ao dizer que eles seriam “acostumados a viver em meio à sujeira”; mantinham o “costume de andar descalços” mesmo depois de imigrarem para a Inglaterra; e eram naturalmente emotivos, apaixonados, violentos, o “ardente sangue irlandês”, os aproximando de povos latinos. Faltou a Engels buscar explicações históricas para esses supostos costumes e traços incivilizados e pouco urbanos dos irlandeses, reproduzindo estereótipos e preconceitos, embora ele mesmo fosse próximo da comunidade irlandesa na Inglaterra e fosse solidário à causa da emancipação da Irlanda do domínio inglês.

☛ A tese do colapso iminente, da crise final do capitalismo, que seria retomada no Manifesto comunista. Sabe-se hoje que o capitalismo tem uma invejável capacidade de reinvenção e que, à época, ainda havia muito terreno disponível para a sua evolução mundial por meio do desenvolvimento científico, da engenharia industrial, das comunicações e dos transportes, da colonização e do imperialismo. A década de 1840, sobretudo a primeira metade, foi um dos piores períodos da economia britânica no século XIX. Logo, é compreensível a tese engelsiana da catástrofe final do capital, apresentada não só por Engels. A historiografia econômica posterior mostrou que a década de 1840 foi o prelúdio de uma nova expansão capitalista, iniciada na década de 1850, e que durou até meados da década de 1870.

☛ A inevitabilidade da crise econômica e da revolução social na Inglaterra. Segundo Engels (cap. 11, pp. 326-7), “a próxima crise deverá ocorrer em 1846 ou 1847”. E mais adiante, escreveu que “em nenhum lugar é tão fácil, como na Inglaterra, fazer previsões: nesse país, todos os elementos do processo social se desenvolveram clara e nitidamente. A revolução deve ocorrer porque já é tarde para chegar-se a uma solução pacífica do conflito; mas certamente pode adquirir uma forma menos violenta da que antevemos aqui. Isso, porém, depende mais do desenvolvimento do proletariado do que da evolução da burguesia”. A história mostrou que as classes dominantes inglesas souberam combater as alas mais radicais da política operária e usar seu domínio imperial para desafogar as crises econômicas e os conflitos políticos, evitando assim a revolução social.

Redação e publicação do Situação e militância comunista na Renânia

Engels redigiu o Situação na Alemanha, durante o outono e o inverno de 1844 e 1845. Podemos conhecer um pouco desse processo criativo por meio de carta dele a Marx, de 19 de novembro de 1844:

Estou com jornais e livros ingleses até as sobrancelhas, que estão servindo de base para meu livro sobre a condição dos proletários ingleses. Espero terminá-lo em meados ou no final de janeiro, tendo concluído a organização do material, a parte mais árdua do trabalho, há cerca de uma semana ou quinze dias. Acusarei a burguesia inglesa, perante o mundo inteiro, de assassinato, roubo e outros crimes em grande escala, e estou escrevendo um prefácio em inglês, que mandarei imprimir separadamente e enviarei aos líderes dos partidos ingleses, homens de letras e membros do Parlamento. Isso dará a esses companheiros algo para se lembrarem de mim. Não é preciso dizer que meus golpes, embora dirigidos aos alforjes, são destinados ao burro, ou seja, à burguesia alemã, para quem deixo bem claro que são tão ruins quanto seus colegas ingleses, exceto por seus métodos de trabalho não serem tão ousados, completos e engenhosos. Assim que terminar isso, começarei a história do desenvolvimento social dos ingleses, o que será ainda menos trabalhoso, uma vez que já tenho o material para isso e o organizei em minha cabeça, e também porque estou perfeitamente esclarecido sobre o assunto.4MECW, Marx and Engels Collected Works, Vol. 38: Marx-Engels: 1844-51, Letters. Londres: Lawrence Wishart, 1982. Disponível em: https://lwbooks.co.uk/marx-engels-collected-works.

Acerca dessa carta, destacam-se alguns itens:

Primeiro, que Engels tinha o projeto de escrever uma história social da Inglaterra, ou “a história do desenvolvimento social dos ingleses”. Trata-se de mais um dos projetos intelectuais monumentais que ele não realizou. O Situação, que deveria ser um capítulo, ou uma parte, dessa história social da Inglaterra, se tornou uma obra inteira.

Segundo, embora seja um livro sobre a Inglaterra — ou sobre a Grã-Bretanha, para ser mais preciso — e fruto de pesquisas realizadas durante seus anos naquele país, o Situação é um livro escrito em alemão e voltado para o público alemão. À época, o máximo que um leitor inglês, que não fosse versado em alemão, claro, poderia saber da obra de Engels seria por meio do prefácio “Às classes trabalhadoras da Grã-Bretanha”, escrito em inglês e impresso em separado da edição germânica para ser enviada aos políticos e às personalidades mais importantes daquele país.

O Situação foi publicado em 1845, em Leipzig, por Otto Wigand, editor dos intelectuais radicais alemães dos anos 1840, como o A essência do cristianismo, de Ludwig Feuerbach, O único e a sua propriedade, de Max Stirner, e dos jornais vinculados aos jovens hegelianos editados por Arnold Ruge, como o Hallischer Jahrbücher e Deutsche Jahrbücher.

Quando não esteve dedicado a organização do material de pesquisa e à redação do livro, Engels realizou, em parceria com Moses Hess, atividades de militância comunista pelas principais cidades da Renânia, província alemã na qual nasceu e cresceu, e, até hoje, uma dos principais centros industriais do mundo, a região metropolitana do Reno-Ruhr, embora, à época, estivesse iniciando seu processo de industrialização.

Um pouco antes, escreveu a parte que lhe cabia para o livro A sagrada família, publicado em fevereiro de 1845 e escrito em coautoria com Karl Marx, sendo a primeira obra de colaboração deles.

Em abril de 1845, Engels se mudou para Bruxelas, onde Marx passou a morar depois de ser expulso da França por causa de suas atividades subversivas. Na capital belga, escreveram o manuscrito de A ideologia alemã, obra jamais publicada em vida.

Folha de rosto da primeira edição de A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, de Friedrich Engels.

Engels na Inglaterra

Engels foi enviado à Inglaterra por seu pai, que também se chamava Friedrich Engels. O Engels pai havia se associado aos Ermen, uma família de industriais neerlandeses com fábricas em Manchester, o centro industrial da Inglaterra à época, fundando a Ermen e Engels. A missão do Engels filho era de supervisionar, a serviço do pai, a administração da empresa, mas ele tinha outros planos em paralelo.

O jovem industrial desembarcou em Londres em novembro de 1842, fixou-se em Manchester no mês seguinte e por lá permaneceu até agosto de 1844.

Quando Engels chegou à Inglaterra, o movimento operário do país vivia a ressaca da Greve Geral de 1842, também conhecida como Plug Plot Riots. Iniciada entre os mineiros de Staffordshire, West Midlands, a greve se espalhou pelas regiões mineiras de Dundee, Escócia, sul de Gales e Cornualha, extremo sudoeste da Inglaterra, e pelas cidades industriais de Yorkshire e Lancashire, onde ficam Leeds e Manchester. A greve foi motivada pela rejeição, em maio de 1842, do Parlamento à segunda petição de reforma política dos cartistas, que havia reunido 10 mil assinaturas. A greve geral foi violentamente reprimida pelas polícias.

Engels rapidamente se aproximou do cartismo e publicou artigos sobre a política da Europa continental no jornal do movimento, o The Northern Star. Conheceu George Julian Harney, uma liderança da ala radical do cartismo (insurrecional), apelidado de Robespierre, e James Leech, operário de Manchester e autor de Stubborn Facts from the Factories by a Manchester Operative, de 1844. Engels considerava o cartismo como uma organização de classe, das classes trabalhadoras, que encapsulava suas consciências coletivas, mas não acreditava que as propostas de reforma política democratizante do movimento poderiam ir à raiz dos problemas e dos desafios dos trabalhadores ingleses. Para Engels, faltava ao cartismo a teoria, ou a filosofia, socialista e comunista da Europa continental, sobretudo a alemã.

¶ A Carta do Povo, documento político publicado em de 7 de junho de 1837 e que reivindicava a democratização da política britânica por meio de seis itens: 1. sufrágio universal (masculino); 2. voto secreto; 3. fim da qualificação de propriedade para servir no Parlamento; 4. salário aos parlamentares; 5. reforma dos distritos eleitorais (mesma quantidade de representação para o mesmo número de eleitores); 6. eleições anuais. Essas reivindicações foram incorporadas à política do Reino Unido ao longo dos séculos XIX e XX, exceto as eleições anuais ao Parlamento. Os cartistas tinham por lema: “O poder político é o nosso meio. A nossa finalidade é o bem-estar social”.

Além do cartismo, Engels também se aproximou e contribuiu com o movimento socialista inglês, em especial aquele liderado por Robert Owen, e escreveu artigos para o The New Moral World, jornal owenista. Frequentou o Hall da Ciência, espaço de instrução e socialização dos socialistas. Ali, assistiu às conferências de economia política de John Watts, que apresentavam um viés operário e crítico às burguesias industriais. Watts pode ser considerado como um precursor da crítica à economia política, era contra a divisão industrial do trabalho e tinha como objetivo um retorno à organização do trabalho da era pré-industrial. Uma de suas obras mais importantes foi The Facts and Fictions of Political Economists, de 1842.

A comunidade de exilados políticos alemães na Inglaterra foi importante para a adaptação de Engels e para os primeiros contatos com as lideranças operárias e os editores dos jornais socialistas. Muitos desses exilados alemães estiveram com Marx e Engels na Liga dos Comunistas e na Revolução Alemã de 1848-9.

Engels manteve contato com a imprensa alemã e escreveu artigos a respeito da Inglaterra logo que desembarcou no país. Os primeiros desses em novembro de 1842, ainda em Londres, informando os leitores alemães acerca da política, indústria, economia, classes sociais, imigrantes irlandeses, crise econômica e dos debates sobre as Leis dos Cereais. Em dezembro de 1842, já em Manchester, escreveu o artigo “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, publicado no Gazeta Renana. Esses textos podem ser considerados como preparativos para a obra maior, o Situação.

Cabeçalhos do The Northern Star e do The New Moral World, jornais em que Engels contribuiu durante seus anos na Inglaterra.

O Situação na Alemanha

Como mencionado antes, o Situação foi publicado em alemão e voltado aos leitores e militantes políticos alemães.

De repercussão imediata na Alemanha, tanto entre radicais quanto entre conservadores, o Situação ofereceu aos socialistas e aos comunistas alemães a base para sua evolução teórica a respeito da crítica à industrialização, incipiente no país. Aos conservadores, ofereceu elementos para formular sua oposição à industrialização do país, associada à “anarquia” social, ou para se antecipar aos conflitos de classes futuros. Entre os argumentos dos conservadores havia a oposição à proposta liberal de uma monarquia constitucional. Segundo eles, a Alemanha precisaria de um Estado autocrático para controlar com mãos de ferro os conflitos sociais decorrentes do processo em curso de urbanização e industrialização, o que não seria possível, diziam, em um Estado liberal, parlamentar.

Ademais, a Revolução Industrial e seus impactos sociais era um tema quente na imprensa e no debate político na Alemanha. Um ano antes da publicação do Situação havia ocorrido a Revolta dos Tecelões da Silésia, a qual perturbou o sono das classes dominantes do país. Logo, uma obra que tratasse de modo sistemático e profundo os problemas sociais e políticos da sociedade mais urbanizada e industrializada da Europa à época teria o interesse imediato dos leitores alemães.

Método, objetividade e parcialidade

Para aqueles que estão realizando pesquisa em graduação ou em pós-graduação, o Situação pode ser um paradigma de método de investigação e exposição.

Contrariando as concepções que afirmam que uma pesquisa científica em humanidades deve ser imparcial, Engels mostra que a objetividade pode caminhar muito bem com a parcialidade, ou até potencializar os resultados da investigação.

Em nenhum momento, Engels se apresentou no Situação como um observador imparcial, neutro e indiferente a seu objeto de investigação. Pelo contrário, desde o começo disse ter lado, e foi justo esse lado que o permitiu ver e escrever como nenhum outro daqueles que também se ocuparam da Revolução Industrial e das classes trabalhadoras. Foi sua aliança política com os trabalhadores que garantiu a originalidade e a genialidade de seu livro. Segundo Hobsbawm,5Hobsbawm, “Introduction”, op. cit., pp. 14-5. o comunismo de Engels “deu a ele uma clarividência econômica, social e histórica muito superior à dos defensores contemporâneos do capitalismo. O bom cientista social, como Engels demonstrou ser, só poderia ser uma pessoa livre das ilusões da sociedade burguesa”.

Trabalho de campo e fontes de pesquisa

Para o Situação, Engels realizou uma espécie de trabalho de campo, algo próximo de uma antropologia urbana, conhecendo tanto os ambientes de trabalho, como as fábricas, quanto os distritos operários das grandes cidades industriais.

Para guiar Engels pelos distritos operários ingleses, duas pessoas foram fundamentais. Primeiro, Georg Weerth, amigo alemão que havia emigrado à Inglaterra, residindo em Bradford, na região metropolitana de Leeds. Segundo, e unarguably a mais importante, Mary Burns, filha de irlandeses imigrantes, nascida em Manchester entre 1822 e 1823. Mary foi a principal guia de Engels nos bairros operários de Manchester. Há muitas imprecisões e especulações a respeito da história dela e de como e quando Engels a conheceu. Um caminho para limpar a biografia de Mary das especulações é a tese de Belinda Webb, Mary Burns, e os ensaios de Michael Herbert, “Frederick Engels and Mary and Lizzy Burns”, e de Mike Dash, “How Friedrich Engels’ Radical Lover Helped Him Father Socialism”.

Importante anotar aqui que outros autores da Era Vitoriana, e dos mais diversos prismas ideológicos, também realizaram suas expedições pelos hábitats das classes trabalhadoras, em especial por Manchester, como Alexis de Tocqueville, em 1835, e Charles Dickens e Thomas Carlyle, ambos em 1838. Todos eles produziram relatos sobre o tema, fosse de ficção ou não ficção. Apesar das diferentes explicações e conclusões às quais chegaram, todos expuseram uma visão sombria e pessimista a respeito das cidades industriais e do destino dos trabalhadores.6Michael Levin, The Condition of England Question: Carlyle, Mill, Engels. Londres: Macmillan, 1998; Steven Marcus, Engels, Manchester, and the Working Class. Londres: Weidenfeld and Nicolson, 1974.

Quanto às fontes de pesquisa, Engels se utilizou das mais variadas, como documentos oficiais do Estado britânico, livros de história e economia, jornais dos mais diferentes espectros políticos e até um pouco de ficção.

Entre os documentos oficiais, destacam-se as legislações, as estatísticas e os relatórios parlamentares, os Blue Books, que, décadas depois, Karl Marx soube utilizar no livro 1 do Capital.

Entre os livros de economia e de história, Engels coletou informações tanto entre os autores conservadores, como Peter Gaskell, The Manufacturing Population of England, de 1833, e Andrew Ure, The Cotton Manufacture of Great Britain, de 1835, e entre relatos de operários e militantes políticos socialistas, com destaque para o Stubborn Facts from the Factories by a Manchester Operative, de James Leech, publicado em 1844.

Os periódicos, tanto os das classes dominantes quanto os das organizações operárias, também lhe ofereceram relatos importantes. Segundo Engels, ele deu preferência aos jornais da imprensa conservadora, para não ser acusado de selecionar as matérias que mais lhe conviessem. À época, os jornalões burgueses não tapavam os olhos para a realidade, não usavam o papel e tinta para pintar uma Inglaterra de fantasia aos seus leitores. Tinham algum compromisso com os fatos, e o caos urbano e social decorrentes da Revolução Industrial eram quase que impossíveis de se contornar. Havia claro cinismo e naturalização da miséria social, como a teoria malthusiana da superpopulação, mas não se tratava de se autoiludir, mas de justificar e racionalizar as contradições do capitalismo.

Engels iniciou sua carreira na imprensa por meio da publicação de poemas e de ensaios sobre literatura, e as obras de ficção não deixaram de aparecer em seus textos de política, economia, entre outros. Sabe-se que ele considerava a literatura tão importante quanto a ciência para a compreensão do mundo. Na edição alemã de 1892, Engels incorporou entre a bibliografia o livro Sybil, or The Two Nations, de Benjamin Disraeli e publicado no mesmo ano do Situação, 1845.

Disraeli, que se tornaria primeiro-ministro britânico nos anos 1870, interessava-se pelo fardo das classes trabalhadoras. Em Sybil, história ambientada em uma versão fictícia das grandes cidades industriais de Lancashire e Yorkshire, ele conta a história do romance entre uma jovem de origem humilde, Sybil Gerard, e um aristocrata, Charles Egremont. Disraeli explora as injustiças sociais e econômicas, as quais criavam as duas nações do título — a dos ricos e a dos pobres. O texto intercala narrativa de romance com descrições das condições de vida das classes trabalhadoras urbanas e defende a necessidade de reformas sociais no país.

Por meio de Sybil, Disraeli promoveu suas ideias sociais conservadoras, advogando a favor de reformas que reduzissem a pobreza e melhorassem a condição de vida e de trabalho dos pobres, sem abandonar a estrutura capitalista da sociedade inglesa. O romance foi um esforço para unir a aristocracia e a classe trabalhadora contra o que ele via como uma crescente ameaça da classe média, isto é, a classe de capitalistas das indústrias. Além da crítica social, o livro também oferece uma visão da política inglesa à época e reflete a preocupação de Disraeli com as tensões entre tradição e modernidade. Embora quase bicentenária, Sybil continua relevante para o estudo das questões de desigualdade e justiça social no mundo capitalista industrializado.

A leitura comparada do Situação e de Sybil pode render pesquisas interessantes, além de analogias entre o casal Sybil Gerard e Charles Egremont e Mary Burns e Friedrich Engels.

Folha de rosto da primeira edição de Sybil, or The Two Nations, de Benjamin Disraeli.

O Situação em inglês e em português

O Situação foi uma das poucas obras de juventude autorizada por Engels para reedições em alemão e para traduções. Em geral, ele era reticente em republicar seus primeiros ensaios, mesmo que fosse pelo valor histórico deles.

A primeira tradução ao inglês, revisada por Engels, foi publicada nos Estados Unidos, em 1887, mais de quarenta anos depois da publicação original em alemão. A publicação na Inglaterra, da mesma tradução estadunidense, ocorreu em 1892. Naquele mesmo ano, ele republicou o livro na Alemanha. Essa nova edição contou com um prefácio no qual ele avalia os méritos e os deméritos da obra, e apresenta em quais pontos ela permanece atual e em quais a história a superou.

Em português, a primeira edição que consegui localizar foi a da Presença, de Lisboa, publicada em 1975, que chegou no Brasil por meio da Martins Fontes. A primeira edição brasileira que localizei foi a da Global, de 1985 ou 1986, com prólogo de José Paulo Netto.

A edição mais atual do Situação é a da Boitempo, publicada em 2010, traduzida por Bernhard Schumann a partir da edição alemã da Marx-Engels-Werke e com supervisão, apresentação e notas de José Paulo Netto.

As primeiras edições em Portugal e no Brasil do Situação, de Engels, respectivamente.

Destaques do Situação

Introdução e capítulo 1: a história da Revolução Industrial e a formação do proletariado

☛ A Inglaterra como a forma clássica, mais completa e desenvolvida, em todos os aspectos e em todas as suas relações, do mundo industrializado. Por isso, ela foi o local ideal para se estudar as classes trabalhadoras e o capitalismo. Essa é uma tese mantida por Marx em O capital.

☛ A partir das classes operárias inglesas se pode compreender as classes operárias em formação na Europa continental.

☛ O livro se propõe a examinar as classes trabalhadoras em todos os seus ramos, e não de modo fragmentado. Os operários e suas frações: indústria, mineração, agricultura.

☛ O presente da Inglaterra é o futuro dos demais países europeus. O presente das classes trabalhadoras inglesas é o futuro das classes trabalhadoras europeias.

☛ O movimento comunista alemão é teórico, filosófico, e apresenta déficit de conhecimento prático. O Situação visa cobrir esse déficit do comunismo alemão.

☛ Apresenta um histórico do progresso da Revolução Industrial, desde meados do século XVIII, das máquinas à vapor e do processamento do algodão, e um histórico da formação do proletariado, a nova classe social, filha do capitalismo industrial.

☛ Examina a perda da autonomia do trabalhador e o controle do capital sobre o trabalho e o tempo por meio da passagem da indústria doméstica para a fábrica, de tecelões-agricultores para proletários fabris.

☛ Durante os trabalhos domésticos de fiação do algodão, da lã, os trabalhadores, senhores do trabalho e do tempo, viviam em isolamento, não compreendendo a dimensão das transformações estruturais em curso. Ainda assim, houve resistências às mudanças impostas pelo capital, conforme estudadas por Edward Palmer Thompson em A formação da classe operária inglesa.

☛ Apresenta histórico da ampliação e sistematização da divisão social do trabalho, dentro e fora das fábricas, e examina a substituição dos trabalhadores pelas máquinas e o aumento da produtividade do trabalho.

☛ Expõe o contraste entre o desenvolvimento da indústria, das cidades e do comércio mundial e o empobrecimento e a miséria (material e moral) da maior parte da população.

☛ A indústria têxtil (lã, algodão, linho, seda) é vista como a mola propulsora da industrialização para os outros ramos da economia: mineração, fabricação de máquinas.

☛ Em razão do aumento da demanda por trabalhadores, combustíveis, máquinas e matérias primas, o capital é comparado a um monstro devorador, pantagruélico, ou como Marx preferiu, um vampiro, um Drácula.

☛ A Revolução Industrial fundou uma nova Inglaterra e trouxe a aceleração da história.

☛ A condição das classes trabalhadoras se tornou um problema, social e político, impossível de se contornar, o que demandava reformas sociais, novas legislações.

☛ Relaciona a formação do movimento operário e a evolução da indústria.

Em resumo, essa é a história da indústria inglesa nos últimos sessenta anos — uma história que não tem equivalente nos anais da humanidade. Há sessenta ou oitenta anos, a Inglaterra era um país como todos os outros, com pequenas cidades, indústrias diminutas e elementares e uma população rural dispersa, mas relativamente importante; agora, é um país ímpar, com uma capital de 2,5 milhões de habitantes, imensas cidades industriais, uma indústria que fornece produtos para o mundo todo e que fabrica quase tudo com a ajuda das máquinas mais complexas, com uma população densa, laboriosa e inteligente, cujas duas terças partes estão ocupadas na indústria e constituem classes completamente diversas das anteriores. Agora, a Inglaterra é uma nação em tudo diferente, com outros costumes e com necessidades novas. A revolução industrial teve para a Inglaterra a mesma importância que a revolução política teve para a França e a filosófica para a Alemanha, e a distância que separa a Inglaterra de 1760 da Inglaterra de 1844 é pelo menos tão grande quanto aquela que separa a França do Antigo Regime da França da Revolução de Julho [de 1830]. O fruto mais importante dessa revolução industrial, porém, é o proletariado inglês (Introdução, pp. 58-9).

Capítulo 2: as grandes cidades industriais

☛ As grandes cidades como produto da evolução da indústria e do comércio. É nas grandes cidades em que se vê, de modo nítido, as consequências da Revolução Industrial e de seu impacto sob os proletários.

☛ Se não o capítulo mais importante do livro, certamente o mais extenso: sessenta páginas.

☛ Engels comenta acerca dos problemas urbanos e sociais das seguintes cidades: Londres, Dublin, Glasgow, Edimburgo, Liverpool, Bristol, Birmingham, Nottingham, Leeds e Manchester.

Os homens só se consideram reciprocamente como objetos utilizáveis: cada um explora o outro e o resultado é que o mais forte pisa no mais fraco e os poucos fortes, isto é, os capitalistas, se apropriam de tudo, enquanto aos muitos fracos, aos pobres, mal lhes resta apenas a vida (cap. 2, p. 68).

Mas os sacrifícios que tudo isso custou, nós só os descobrimos mais tarde. Depois de pisarmos, por uns quantos dias, as pedras das ruas principais, depois de passar a custo pela multidão, entre as filas intermináveis de veículos e carroças, depois de visitar os “bairros de má fama” desta metrópole — só então começamos a notar que esses londrinos tiveram de sacrificar a melhor parte de sua condição de homens para realizar todos esses milagres da civilização de que é pródiga a cidade, só então começamos a notar que mil forças neles latentes permaneceram inativas e foram asfixiadas para que só algumas pudessem desenvolver-se mais e multiplicar-se mediante a união com as de outros. Até mesmo a multidão que se movimenta pelas ruas tem qualquer coisa de repugnante, que revolta a natureza humana. Esses milhares de indivíduos, de todos os lugares e de todas as classes, que se apressam e se empurram, não serão todos eles seres humanos com as mesmas qualidades e capacidades e com o mesmo desejo de serem felizes? E não deverão todos eles, enfim, procurar a felicidade pelos mesmos caminhos e com os mesmos meios? Entretanto, essas pessoas se cruzam como se nada tivessem em comum, como se nada tivessem a realizar uma com a outra e entre elas só existe o tácito acordo pelo qual cada uma só utiliza uma parte do passeio para que as duas correntes da multidão que caminham em direções opostas não impeçam seu movimento mútuo — e ninguém pensa em conceder ao outro sequer um olhar. Essa indiferença brutal, esse insensível isolamento de cada um no terreno de seu interesse pessoal é tanto mais repugnante e chocante quanto maior é o número desses indivíduos confinados nesse espaço limitado; e mesmo que saibamos que esse isolamento do indivíduo, esse mesquinho egoísmo, constitui em toda a parte o princípio fundamental da nossa sociedade moderna, em lugar nenhum ele se manifesta de modo tão impudente e claro como na confusão da grande cidade. A desagregação da humanidade em mônadas, cada qual com um princípio de vida particular e com um objetivo igualmente particular, essa atomização do mundo, é aqui levada às suas extremas consequências (cap. 2, pp. 67-8).

☛ Formação dos bairros e dos distritos operários, ou o fenômeno da gentrificação.

☛ Relatos detalhados das miseráveis residências operárias e de casos reais publicados na imprensa acerca das ruas sujas e imundas, da fuligem acumulada dentro e fora dos edifícios; dos porões escuros e mal arejados usados como residências; da engenharia e da arquitetura irracional dos distritos operários, contrastado com os bairros aristocráticos dos burgueses, bem construídos, arborizados, higienizados.

☛ Metáfora do empilhamento de casas e de pessoas. O empilhamento remete à mercadoria, isto é, as pessoas são tratadas pela sociedade capitalista como mercadorias, podendo ser empilhadas, consumidas e descartadas. Os albergues são ocupados com a maior quantidade possível de pessoas visando maximizar os lucros.

☛ Poluição dos rios. Exemplos do Irk e Irwell, de Manchester, esgotos a céu aberto: “Estreito curso d’água, negro, nauseabundo, cheio de imundície e detritos que lança sobre a margem direita, mais baixa; aí, no período da seca, alinha-se uma série de charcos lamacentos, esverdeados e fétidos, do fundo dos quais sobem bolhas de gás mefítico, cujo cheiro, sentido mesmo do alto da ponte, quarenta ou cinquenta pés acima da água, é insuportável” (cap. 2, p. 93).

☛ O vestuário dos operários. Além de estarem em farrapos, não são adequados para o clima frio e úmido da Inglaterra.

☛ A dieta dos operários é pobre em nutrientes. Em muitos casos, eles conseguem comida por meio das sobras das feiras. Os operários são ludibriados pelos comerciantes, os quais adulteram os alimentos: vende-se manteiga salgada por fresca; mistura-se farinha de arroz no açúcar; adiciona-se chicória no café moído; o vinho do Porto é adulterado, as bebidas alcoólicas em geral.

À guisa de conclusão, resumamos os fatos. As grandes cidades são habitadas principalmente por operários, já que, na melhor das hipóteses, há um burguês para dois, muitas vezes três e, em alguns lugares, quatro operários; esses operários nada possuem e vivem de seu salário, que, na maioria dos casos, garante apenas a sobrevivência cotidiana. A sociedade, inteiramente atomizada, não se preocupa com eles, atribuindo-lhes o encargo de prover suas necessidades e as de suas famílias, mas não lhes oferece os meios para que o façam de modo eficaz e permanente. Qualquer operário, mesmo o melhor, está constantemente exposto ao perigo do desemprego, que equivale a morrer de fome e são muitos os que sucumbem. Por regra geral, as casas dos operários estão mal localizadas, são mal construídas, malconservadas, mal arejadas, úmidas e insalubres; seus habitantes são confinados num espaço mínimo e, na maior parte dos casos, num único cômodo vive uma família inteira; o interior das casas é miserável: chega-se mesmo à ausência total dos móveis mais indispensáveis. O vestuário dos operários também é, por regra geral, muitíssimo pobre e, para uma grande maioria, as peças estão esfarrapadas. A comida é frequentemente ruim, muitas vezes imprópria, em muitos casos — pelo menos em certos períodos — insuficiente e, no limite, há mortes por fome. A classe operária das grandes cidades oferece-nos, assim, uma escala de diferentes condições de vida: no melhor dos casos, uma existência momentaneamente suportável — para um trabalho duro, um salário razoável, uma habitação decente e uma alimentação passável (do ponto de vista do operário, é evidente, isso é bom e tolerável); no pior dos casos, a miséria extrema — que pode ir da falta de teto à morte pela fome; mas a média está muito mais próxima do pior que do melhor dos casos. E essa escala não se compõe de categorias fixas, que nos permitiriam dizer que esta fração da classe operária vive bem, aquela mal, enquanto as coisas permanecem como estão; ao contrário: se, no conjunto, alguns setores específicos gozam de vantagens sobre outros, a situação dos operários no interior de cada segmento é tão instável que qualquer trabalhador pode ter de percorrer todos os degraus da escala, do modesto conforto à privação extrema, com o risco da morte pela fome (cap. 2, pp. 115-6).

Capítulo 3: a concorrência capitalista

☛ Sob o capitalismo, a humanidade vive a guerra social, o todos contra todos. Isso me remete ao título em alemão do filme O enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog: Jeder für sich und Gott gegen alle, isto é, cada um por si e Deus contra todos.

☛ A sociabilidade capitalista produz uma subjetividade extremamente individualista. As grandes cidades capitalistas possibilitam uma vida em anonimato, a perda do senso de comunidade e a mercantilização de todos os aspectos da vida.

☛ Essa guerra ocorre entre as classes e dentro das classes: burguesia × proletários; burguesia × burguesia; proletários × proletários.

☛ A burguesia, protegida pelo Estado, monopoliza tudo o que a sociedade precisa para a subsistência, o que obriga os proletários a vender seu trabalho. Essa troca comercial entre burguesia e proletários aparenta ser livre, como se estes agissem conforme sua própria vontade. (Note que Engels não diz que os trabalhadores vendem a força de trabalho, como Marx no Capital, e que não considera essa troca como troca de equivalentes.)

☛ O operário e seu trabalho são como mercadorias, tem valor médio (salário médio). Seu valor oscila, podem estar em estoque, em falta, ou em excesso, formando uma população supérflua ao capital.

☛ A relação entre a demanda do capital por mais trabalhadores e o aumento e a concentração da população nas grandes cidades industriais, o que produz uma relação de oferta e demanda por força de trabalho favorável aos capitalistas.

☛ Formação do exército industrial de reserva, termo de Marx no Capital. No Situação, Engels usa o termo reserva de trabalhadores desempregados.

☛ Teoria dos ciclos das crises capitalistas, as quais ocorreriam a cada cinco anos: prosperidade ↝ crise ↯ prosperidade ↝ crise ↯; tese já apresentada em artigos como “Esboço para uma crítica à economia política”, de 1844.

☛ Engels comenta acerca da relação da especulação, do capital fictício e do crédito no ciclo das crises.

Capítulos 4-7, 9-10: as classes trabalhadoras do mundo industrializado e a imigração irlandesa

☛ Quais são os trabalhadores, as condições de vida, trabalho e habitação que o capitalismo industrial produz? Quais são os comportamentos individuais e sociais que o capitalismo industrial induz à população? Por fim, qual o ser social que emerge do capitalismo industrial? São a essas perguntas que Engels dedica a maior parte do livro. E são nessas partes em que estão as principais contribuições de Engels acerca do impacto social do capitalismo industrial e da urbanização capitalista.

☛ O capitalismo despeja os proletários — imigrantes rurais ou de outros países de economias pré-capitalistas, como os irlandeses — em um inferno social no qual eles são superexplorados e abandonados à própria sorte para conseguir alimentação, habitação e outras necessidades básicas.

☛ O capitalismo, por meio das leis e da repressão policial, impõe a disciplina social dentro e fora das fábricas, pune financeira e criminalmente os trabalhadores, como nos casos das Leis dos Pobres, promulgadas e aplicadas na Inglaterra desde o século XVII.

☛ Naquele contexto, a desumanização radicalizou politicamente os trabalhadores e os afastou da ideologia das classes dominantes. Mesmo suas expressões religiosas antagonizavam com as das classes dominantes, fenômeno observável desde as seitas cristãs das revoluções inglesas do século XVII, conforme estudadas por Christopher Hill em O mundo de ponta-cabeça.

☛ Engels registra e comenta os desvios morais dos operários e de suas famílias: vícios, alcoolismo, criminalidade e prostituição.

☛ Registra e comenta a organização política dos trabalhadores: sindicatos, partidos, associações, greves.

☛ A população irlandesa é utilizada pelos capitalistas ingleses como reserva de mão de obra. No século XIX, migraram em média à Inglaterra 50 mil irlandeses por ano. É a classe trabalhadora mais precarizada; piores empregos, salários, condições de habitação etc.

☛Concorrência por empregos entre os trabalhadores ingleses e irlandeses: uma vez que os custos de vida dos irlandeses eram menores que os dos ingleses, os capitalistas se aproveitaram para pressionar os salários dos operários para baixo, o que promoveu a xenofobia e a divisão das classes trabalhadoras no país.

☛ A concentração da população nas grandes cidades teve uma influência sanitária deletéria, e criava o ambiente propício para proliferação de doenças, endemias e pandemias. (Acerca desse fenômeno no século XXI, ler o livro de Mike Davis, The Monster at Our Door: The Global Threat of Avian Flu, de 2005. Em 2020, no contexto da pandemia da covid-19, ele reeditou o livro, com um novo título e prefácio, The Monster Enters: Covid-19, Avian Flu, and the Plagues of Capitalism.)

☛ A passagem sobre os condenados do trabalho dialoga com os Manuscritos econômico-filosóficos, de Marx, acerca da desumanização das pessoas sob o regime capitalista de trabalho:

Uma outra fonte da imoralidade dos trabalhadores reside no fato de eles serem os condenados do trabalho. Se a atividade produtiva livre é o máximo prazer que conhecemos, o trabalho forçado é o tormento mais cruel e degradante. Nada é mais terrível do que fazer todos os dias, da manhã até a noite, um trabalho de que não se gosta. E quanto mais sentimentos humanos tem o operário, tanto mais odeia seu trabalho, porque sente os constrangimentos que implica e sua inutilidade para si mesmo. Afinal, por que trabalha? Pelo prazer de criar? Por um instinto natural? Nada disso: trabalha apenas por dinheiro, por uma coisa que nada tem a ver com o trabalho mesmo; trabalha porque é forçado a trabalhar, um trabalho exaustivo, em longas jornadas, um trabalho ininterruptamente monótono que, só por isso, para quem conserva sentimentos humanos, desde as primeiras semanas se torna uma tortura. E, ademais, a divisão do trabalho multiplicou os efeitos embrutecedores do trabalho forçado. Na maior parte dos ramos da indústria, a atividade do operário reduz-se a uma miserável e mecânica manipulação, que se repete, minuto a minuto, ano a ano (cap. 5, p. 157).

☛ Engels também identificou algum lado positivo a respeito da concentração populacional nas grandes cidades industriais:

Se por um lado a concentração da população é favorável e estimulante para as classes proprietárias, por outro torna ainda mais rápido o desenvolvimento dos operários. Os trabalhadores começam a sentir-se, em sua totalidade, como uma classe; descobrem que, fracos individualmente, unidos constituem uma força; o terreno é propício para sua autonomização em face da burguesia, para a formação de concepções próprias dos operários e adequadas à sua posição no mundo; eles começam a dar-se conta de que são oprimidos e adquirem importância política e social. As grandes cidades são o berço do movimento operário: foi nelas que, pela primeira vez, os operários começaram a refletir sobre suas condições e a lutar; foi nelas que, pela primeira vez, manifestou-se o contraste entre proletariado e burguesia; nelas surgiram as associações operárias, o cartismo e o socialismo (cap. 5, p. 160-1).

☛ No capital, a ciência e a técnica estão do lado dos capitalistas e dos seus interesses em superexplorar os trabalhadores. Logo, a introdução e o desenvolvimento das máquinas nas fábricas não reduz o tempo e/ou a intensidade do trabalho, mas os amplia. Há nessa tese engelsiana um diálogo acerca da Indústria 4.0 e da IA.

O único ganho que as máquinas trouxeram aos operários foi demonstrar-lhes a necessidade de uma reforma social que as faça trabalhar não contra eles, mas a seu favor (cap. 6, p. 177).

Nas condições sociais vigentes, as consequências de todos os aperfeiçoamentos mecânicos são desfavoráveis aos operários, e o são em alto grau (cap. 6, p. 178).

☛ As mulheres e as crianças das famílias operárias remetem as passagens acerca da desagregação da família trabalhadora pelo capital no Manifesto comunista.

☛ A vida dupla das mulheres trabalhadoras: operárias e donas de casa. Muitas recorriam à prostituição como modo de sobrevivência e estavam sujeitas a violências sexuais no trabalho e em casa.

☛ O acesso à educação pelas crianças das famílias operárias era a mínima necessária. Muitas delas trabalhavam e estudavam, outras só trabalhavam, havendo relatos de crianças que dormiam nas fábricas. Nelas, muitas sofriam assédios morais e sexuais, e eram vítimas de acidentes de trabalho.

Se a família da sociedade atual se desagrega, essa desagregação mostra justamente que, no fundo, não é o amor familiar que constitui seu vínculo substantivo, mas sim o interesse privado, necessariamente conservado nessa falsa comunidade de bens (cap. 6, p. 184).

☛ O proletariado mineiro era uma fração estratégica das classes trabalhadoras. Eram eles os responsáveis pela extração das matérias-primas e dos combustíveis para a indústria: carvão, cobre, chumbo, ferro, estanho… e, hoje, lítio, o metal do momento.

☛ O proletariado agrícola se formou pelos camponeses arruinados e pela concentração de terras, os cercamentos [enclosures], processo iniciado no século XVI. As passagens sobre os proletários agrícolas demonstra que o caos do capital não está só nas cidades e na indústria, mas que ele se espalhava pelo campo.

Capítulos 8 e 11: a burguesia e o movimento operário

As burguesias

☛ Para as burguesias, as classes trabalhadoras são nada além de mão de obra, uma matéria-prima para a produção de mercadorias, isto é, a relação entre as burguesias e as classes trabalhadoras é econômica, de compra e venda, uma relação desumanizada e antiética.

☛ O alvo da crítica de Engels são as classes burguesas, desumanizadas pelo capital, e sua crítica às burguesias é uma crítica ao capitalismo. Para Engels, não bastaria que os burgueses fossem bons, praticassem a filantropia e advogassem políticas de reforma social. Na verdade isso seria impossível. A relação desumana entre burguesias e classes trabalhadoras é uma imposição do capital, é estrutural.

☛ Embora as burguesias digam que o Estado é um estorvo aos seus negócios, elas não podem prescindir dele. São a legislação, o Estado e suas instituições de coerção que garantem o ordenamento jurídico que permite com que o capitalismo opere, que as burguesias possam prosperar e realizar seus negócios.

☛ Engels critica a filantropia, por meio da qual as burguesias fazem da pobreza mais um comércio, e a teoria malthusiana da superpopulação, uma falácia da economia política.

Os movimentos operários

☛ “Os proletários têm claro que são, com suas mãos operosas, homens necessários e que, na realidade, os verdadeiramente supérfluos são os ricos senhores capitalistas, que nada produzem” (cap. 11, p. 316).

☛ Os trabalhadores se organizam politicamente contra as burguesias.

☛ “O operário só pode salvar sua condição humana pelo ódio e pela rebelião contra a burguesia” (cap. 8, p. 247).

☛ O ludismo como revolta e oposição à introdução das máquinas nos processos produtivos. Todavia, são ações isoladas e imediatas.

☛ As greves são, “em geral, pequenas escaramuças de vanguarda e, às vezes, combates mais importantes; não solucionam nada definitivamente, mas são a prova mais segura de que se aproxima o confronto decisivo entre o proletariado e a burguesia. Elas são a escola de guerra na qual os operários se preparam para a grande batalha, agora inevitável; são os pronunciamentos das distintas categorias de operários, consagrando sua adesão ao grande movimento proletário” (cap. 8, p. 258).

☛ Em 1824, os proletários obtêm a liberdade de associação. Antes disso, eles atuavam em sociedades secretas, clandestinas. A partir de então, surgiu a possibilidade de formar organizações de massas, sindicatos [trade unions], para desafiar, de modo unificado e sistemático, as burguesias e o Estado.

☛ O cartismo é considerado por Engels a maior e mais avançada organização operária da Inglaterra à época.

O cartismo é a forma condensada da oposição à burguesia. Nas associações e nas greves, a oposição mantinha-se insulada, eram operários ou grupos de operários isolados a combater burgueses isolados; nos poucos casos em que a luta se generalizava, na base dessa generalização estava o cartismo — neste, é toda a classe operária que se insurge contra a burguesia e que ataca, em primeiro lugar, seu poder político, a muralha legal com que ela se protege (cap. 8, p. 262).

☛ O cartismo e owenismo: Engels vê méritos e defeitos em ambos os movimentos. Para ele, seria necessário unificá-los: “A fusão do socialismo com o cartismo, a reconstituição do comunismo francês em moldes ingleses, será a próxima etapa e ela já está em curso. Quando estiver realizada, a classe operária será realmente senhora da Inglaterra” (cap. 8, p. 271).

☛ Sociabilidade e formação política cartista e socialista: “As diversas frações operárias — membros das associações, cartistas e socialistas —, às vezes em unidade, às vezes isoladamente, fundaram por seus próprios meios uma grande quantidade de escolas e salões de leitura para elevar o nível cultural do povo. Todas as organizações socialistas, quase todas as cartistas e muitas associações profissionais possuem instituições desse gênero; nas escolas, oferece-se às crianças uma educação verdadeiramente proletária, livre das influências burguesas, e nos salões de leitura encontram-se quase exclusivamente livros e jornais proletários” (cap. 8, p. 271).

Engels como criador do conceito de revolução industrial?

É muito comum na bibliografia acerca do Situação atribuir a Engels a criação do conceito de revolução industrial. Pode-se atribuir a ele ser pioneiro e popularizador do uso desse conceito na Alemanha. Porém, há fontes que demonstram que o termo revolução industrial já estava em uso na França e na Inglaterra desde a década de 1820.

No ensaio “The Early Use of the Term Industrial Revolution”, de 1922, a historiadora econômica canadense Anne Bezanson apresenta uma investigação inicial acerca das primeiras ocorrências e do contexto do uso do termo revolução industrial.

Segundo ela, a primeira aparição do termo foi em francês, em agosto de 1827, na reimpressão de um artigo do Journal des Artistes no Le Moniteur Universel, em que aparece em destaque, no centro da página, as palavras “Grande Révolution Industrielle”.

Bezanson recupera o uso próximo das palavras revolução e indústria em outros textos das décadas de 1800 e 1810: revolutions dans l’industrie, révolutions dans les arts e révolution utile à l’industrie. Em todos esses casos, o uso de revolução já se aplicava às mudanças nas artes, na manufatura e nas instituições sociais.

O uso do termo revolução se popularizou pela Europa a partir da Revolução Francesa de 1789, a qual alterou o significado original da palavra. Inicialmente, a palavra revolução era aplicada conforme o significado atribuído pela astronomia: revolucionar, revolver, retornar, restabelecer, restaurar. A partir de 1789 se passou a empregar o significado histórico: mudança, novidade, inovação, descoberta, aplicável às ciências, às artes, aos meios de transporte e de comunicação.

Bezanson explora como o termo, inicialmente esporádico e localizado, começou a se destacar na literatura e nas análises históricas quando a sociedade inglesa passou a reconhecer o alcance e o impacto das transformações industriais. Segundo Bezanson, o termo não surgiu imediatamente durante aquele processo, mas foi adotado retrospectivamente para descrever a profundidade das transformações em relação ao trabalho, à organização social e às novas formas de produção.

Os primeiros usos de Engels do termo revolução industrial que consegui identificar foi no ensaio “A situação da Inglaterra: I. O século XVIII”, redigido entre janeiro e março de 1844, e não no Situação. Naquele ensaio, Engels apresenta um breve histórico da economia e da sociedade inglesa do século XVIII, a formação do capitalismo industrial, um possível prelúdio para seu projeto de história social da Inglaterra. Ali ele usa dois termos para revolução industrial, um mais germânico, industriellen UmwälzungUmwälzung significa a alteração profunda de algo —, e outro mais anglófono, ou francófono, industriellen Revolution.

Bezanson considera que a obra de Engels, além da de Marx, ajudou a consolidar o termo revolução industrial na história econômica e social, influenciando o uso posterior do termo.

A situação das classes trabalhadoras no séculos XX e XXI

O fardo dos trabalhadores e trabalhadoras atravessou o século XX e permanece no século XXI, e muito se escreveu acerca disso. Nesta seção, gostaria de compartilhar alguns livros e artigos que tratam das classes trabalhadoras na Inglaterra, no Brasil e no mundo.

Começando por George Orwell, autor de Down and Out in Paris and London, The Road to Wigan Pier — Wigan é cidade da Grande Manchester — e A Clergyman’s Daughter. Down and Out in Paris and London, publicado em 1933, é uma autobiografia romanceada sobre o período em que o escritor viveu e trabalhou em Paris como um proletário e sobre a experiência dele entre os moradores de rua de Londres. Em The Road to Wigan Pier, de 1937, Orwell realiza uma experiência similar à de Engels, conhecendo e convivendo com os trabalhadores em suas casas e locais de trabalho. Essas experiências inspiraram muitas das obras de ficção de Orwell, como A Clergyman’s Daughter, de 1935, em que a protagonista passa a viver como uma pobre trabalhadora nos mais diversos serviços, inclusive como professora em uma escola particular do estilo caça-níqueis, tratando portanto da proletarização dos professores.

Edições da Penguin, coleção Modern Classics, dos livros de George Orwell.

Os livros de Orwell mencionados são todos da década de 1930, isto é, antes da Segunda Guerra. A condição de vida e trabalho dos trabalhadores britânicos mudou muito depois do conflito, sobretudo depois do Labour Party vencer as eleições parlamentares de 1945 e colocar Clement Attlee no cargo de primeiro-ministro. Attlee governou o Reino Unido entre 1945 e 1950 e instituiu muitas reformas que atendiam a demandas históricas das classes trabalhadoras, uma delas foi a formação de um sistema nacional e público de saúde, o NHS, em 1948. Esse e outros serviços públicos, estabelecidos sob os governos de Estado de bem-estar social, ou welfare state, permitiram melhorias substanciais na vida da população britânica. Contudo, mesmo durante os anos dourados das classes trabalhadoras,7Modo pelo qual Hobsbawm, em Era dos extremos (Trad. de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, cap. 9), se refere aos anos 1950 e 1960, os quais seriam de prosperidade e bem-estar para os trabalhadores atendidos pelo welfare state. europeias sobretudo, a pobreza, quando não a miséria, não foi superada.

Em um ensaio fotográfico encomendado no final dos anos 1960, Nick Hedges documenta a permanência de residências inadequadas à habitação. Algumas das fotografias foram publicadas pelo The Guardian em “‘A failure of society’: Britain’s Slum Housing Crisis — In Pictures”.

As crianças da família Pryde em seu quarto, em Moss Side, Manchester, 1969. “Nossa casa em Moss Side estava tão abandonada que não podíamos usar todos os cômodos. Uma porta nem sequer se abria. Então, um dia, papai a arrombou e o teto inteiro caiu no chão” — leia mais acerca de Paul Pryde, que aparece nesta foto com cinco anos de idade, sobre como foi crescer pobre em Moss Side, Manchester.

A crise habitacional no Reino Unido continua e ganha novas facetas ao longo dos anos. A série The Empty Doorway, publicada no The Guardian, documenta a vida de pessoas que perderam suas casas e passaram a viver em abrigos ou nas ruas.

Mesmo aqueles que conseguem manter uma casa ou um apartamento não estão livres de riscos, uma vez que as habitações voltadas para os trabalhadores não recebem manutenção adequada, o que coloca a vida de centenas de milhares de pessoas em perigo. Um dos casos mais conhecidos foi o incêndio do Grenfell Tower, em Londres. Visado aumentar seus lucros, a empresa responsável pela administração e manutenção do edifício fraudou os testes de segurança e de combate a incêndios. Em 14 de junho de 2017, o Grenfell Tower entrou em chamas. O incêndio durou sessenta horas, setenta pessoas morreram no local e duas pessoas morreram no hospital. Entre os sobreviventes, houve mais de setenta feridos. O desastre do Grenfell Tower foi o pior incêndio residencial no Reino Unido desde a Blitz, a campanha nazista de bombardeio do país durante a Segunda Guerra.

Assim como na Manchester de Engels, as empresas de construção civil e os landlords oferecem qualquer buraco como habitação, como nos casos dos apartamentos sem janelas. Além de aumentar os custos de eletricidade, o que compromete a renda, morar em um local sem iluminação natural traz muitos prejuízos à saúde física e mental, o que compromete a vida. Empreendimentos desse tipo demonstram a visão desumanizada que os capitalistas têm da população em geral.

Alugar apartamentos para estudantes universitários é uma das fontes de lucro da especulação imobiliária britânica. Muitos estudantes se mudam de cidade para estudar e se veem obrigados a aceitar os piores contratos nos piores apartamentos. Em alguns casos, os custos do aluguel são tão altos que muitos deles abandonam a universidade. O episódio “Asking Students Why They Put Up with Such Shit Housing”, da série Extreme Britain do PoliticsJOE, expõe ainda mais a crise habitacional do país.

Além da Grã-Bretanha, outros países centrais do capitalismo, como a Alemanha e os Estados Unidos também têm seus desafios e crises habitacionais, o que reforça a tese engelsiana de que o problema habitacional é estrutural ao capital, e que ele não pode ser superado sem a superação do próprio capital.

Um fenômeno urbano apresentado por Engels no Situação foi o da gentrificação das cidades, embora o termo ainda não existisse no sentido moderno. A Manchester que Engels estudou e descreveu no Situação não existe mais. Muitos de seus prédios foram demolidos e substituídos por outros. Todavia, a especulação imobiliária e a gentrificação continuou e se expandiu, rendendo hoje à cidade o apelido de Manc-hattan por causa dos custos cada vez mais altos para morar e trabalhar nela, análogos à Manhattan, Nova York. Consequentemente, as classes trabalhadoras são obrigadas a se mudarem para os bairros mais afastados dos centros, onde estão os melhores empregos e serviços públicos.

O outro lado da moeda da gentrificação, é a favelização, um fenômeno mundial, sobretudo nos países do sul global, estudado por Mike Davis em Planeta favela, de 2006.

No Brasil, a favelização é um fenômeno generalizado, e até naturalizado, mesmo em São Paulo, a cidade que os jornalões diários se referem como “a maior e a mais rica da América Latina”. Segundo o Censo 2022, na capital paulista, os “imóveis desocupados representam doze vezes a população de rua da cidade de São Paulo”. Ao mesmo tempo, quase 50 mil pessoas são sem-teto, ou 25% de todos os moradores de rua do país. Entre as principais causas está a especulação imobiliária, que mantém imóveis desocupados para aumentar o valor do aluguel, ou do metro quadrado, dos que estão disponíveis no mercado — isto é, uma relação entre a oferta e a demanda favorável aos landlords paulistanos. (Enquanto escrevo esta resenha, o censo da população de rua de São Paulo foi atualizado para 90 mil.)

Sobre a crise habitacional e a especulação financeira no mercado imobiliário, o Guerra dos lugares, de Raquel Rolnik, publicado em 2015, é mais do que recomendável.

Quanto aos livros acerca das novas formas de exploração do trabalho e as novas formas de resistência das classes trabalhadoras, recomendo as pesquisas de Ricardo Antunes, O privilégio da servidão e Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0, e de Ruy Braga, A política do precariado e A rebeldia do precariado.