
The Magazine of Fantasy and Science Fiction, Nova York, v. 25, n. 5, pp. 74-78, nov. 1963.
ISSN 0024-984X
Tradução e apresentação de Felipe Cotrim
Apresentação
“Oito horas da manhã” [“Eight O’Clock in the Morning”] é um conto de ficção científica do escritor e cartunista estadunidense Ray Nelson publicado em novembro de 1963 na The Magazine of Fantasy and Science Fiction.
Nesse conto inspirado na alegoria da caverna,1Platão, Obras, vol. 1: A República. 2. ed. Trad. e org. de Jacó Guinsburg. Notas de Daniel Lopes. Intr. de Maria Sylvia Franco. São Paulo: Perspectiva, 2018, livro 7. (Textos; 19). Nelson narra a história de George Nada, o qual, depois de participar de uma sessão de hipnose, passa a ver a realidade por detrás das aparências imediatas. Desse modo, George Nada descobre que vive em um mundo onde uma espécie alienígena com aparência de répteis, os fascinadores, coloniza o planeta Terra e vive à custa da humanidade. A partir de então, George se engaja em uma luta para despertar e libertar a humanidade de sua condição subalterna perante os fascinadores.

Capa da edição de novembro de 1963 da The Magazine of Fantasy and Science Fiction.

Primeira página de “Oito horas da manhã”, de Rey Nelson, publicado em novembro de 1963 na The Magazine of Fantasy and Science Fiction.
Em 1986, o conto recebeu adaptação gráfica pelas mãos do cartunista estadunidense Bill Wray. Publicada no número 6 da Alien Encounters, a adaptação recebeu o título de “Nada” e é, em linhas gerais, fiel ao conto de Nelson.

Capa do número 6 da Alien Encounters, publicada em 1986.

Página de “Nada”, publicado em 1986 no número 6 da Alien Encounters.
Dois anos depois, “Oito horas da manhã” foi adaptado para o cinema pelo cineasta, roteirista e músico estadunidense John Carpenter no filme They Live. Dessa vez, Nada (Roddy Piper) é um andarilho que vive em um acampamento de sem-tetos em Los Angeles. Em frente ao acampamento há uma igreja que realiza trabalhos de assistência social entre a população pobre da região. O comportamento peculiar do pastor da igreja e a estranha movimentação dos membros dela desperta a curiosidade de Nada, que resolve adentrá-la em segredo. Lá, descobre que a igreja é na realidade uma fachada para uma organização política clandestina de vanguarda que visa despertar a população da alienação cotidiana e iniciar uma sublevação popular contra as classes dominantes. Essa organização política se utiliza dos mais variados métodos, dentre eles, invadir o sinal televisivo da cidade para divulgar mensagens de subversão da ordem e fabricar bugigangas, como um modelo de óculos de sol capaz de revelar as mensagens subliminares dos anúncios publicitários.
No documentário The Pervert’s Guide to Ideology, de 2012, o filósofo esloveno Slavoj Žižek apresentou uma interpretação sobre a adaptação cinematográfica de Carpenter de “Oito horas da manhã”. Segundo Žižek, o tema central do filme seria o da ideologia, compreendida nesse caso específico como sendo o velamento da realidade.2Para um estudo perspicaz sobre ideologia, ler Terry Eagleton, Ideologia, uma introdução (Trad. de Silvana Vieira e Luís Carlos Borges. São Paulo: Editora Unesp, 1997).

Cartaz do filme They Live (1988), de John Carpenter.

Cartaz do filme The Pervert’s Guide to Ideology (2012).
“Oito horas da manhã”, de Ray Nelson
Sob a superfície alegre da personalidade do sr. Ray Nelson repousa uma permanente suspeita das muitas facetas de nossa sociedade, o produto de vários milhares de anos da civilização humana, e essa suspeita encontra expressão em suas histórias. “Acredito sermos propriedade”, observou o falecido Charles Fort, e essa revelação chegou para George Nada quando… Amantes das boas e velhas histórias de horror apreciarão essa boa e nova história de horror. Você jamais confiará em sua televisão novamente.
Ao final do espetáculo, o hipnotizador disse aos hipnotizados: “Acordem”.
Algo fora do comum aconteceu.
Um dos hipnotizados despertou completamente. Isso jamais havia ocorrido antes. Seu nome era George Nada e ele arregalou os olhos para o mar de rostos no teatro, a princípio, sem notar nada fora do comum. Depois notou, localizando aqui e ali entre o público, os rostos não humanos, os rostos dos fascinadores. Evidentemente, eles estiveram ali o tempo todo, mas só George fora realmente despertado, logo, só George os reconheceu por aquilo que eles eram. Ele compreendeu tudo em um instante, incluindo o fato de que, caso exibisse algum sinal externo, os fascinadores comandariam imediatamente que ele retornasse ao estado anterior, e ele obedeceria.
Ele saiu do teatro, atirando-se entre a noite de neon, evitando cautelosamente qualquer indicação de que ele enxergava a pele verde e reptiliana ou os muitos olhos amarelos dos governantes da Terra. Um deles lhe perguntou: “Tem fogo, amigo?”. George lhe deu fogo e, então, seguiu em frente.
Em intervalos ao longo da rua, George viu os anúncios pendurados com fotografias dos muitos olhos dos fascinadores e toda uma série de ordens impressas embaixo delas, como: “Trabalhe oito horas, distraia-se por oito horas, durma oito horas” e “Case e reproduza-se”. Um aparelho de TV na vitrine de uma loja atraiu a atenção de George, mas ele desviou o olhar no momento exato. Ele conseguia resistir à ordem enquanto não olhasse para o fascinador na tela: “Fique ligado neste canal”.
George vivia sozinho em um pequeno dormitório e, logo que chegou em casa, a primeira coisa que fez foi desconectar a TV. Contudo, ele conseguia escutar as TVs dos vizinhos dos outros quartos. Na maior parte do tempo, as vozes eram humanas, mas às vezes ele escutava o coaxar arrogante dos alienígenas, estranhamente parecido com os dos pássaros. “Obedeça ao governo”, disse um coaxo. “Somos o governo”, disse outro. “Somos seus amigos, você faria qualquer coisa por um amigo, não?”
“Obedeça!”
“Trabalhe!”
De repente, tocou o telefone.
George atendeu. Era um dos fascinadores.
“Alô”, guinchou. “Quem fala é o seu comandante, Robinson, o chefe da polícia. Você é um homem velho, George Nada. Amanhã de manhã, às oito horas, seu coração vai parar. Por favor, repita”.
“Sou um homem velho”, disse George. “Amanhã de manhã, às oito horas, meu coração vai parar”.
O comandante desligou.
“Não, não vai, não”, sussurrou George. Questionou o porquê de o quererem morto. Suspeitavam que ele fora despertado? Provavelmente. Alguém o deve ter descoberto, notado que ele não respondia como os outros. Caso George estivesse vivo após um minuto depois das oito amanhã de manhã, então eles teriam certeza.
“Não há motivo para ficar aqui esperando o fim”, pensou.
Ele saiu outra vez. Os anúncios, as TVs, as ordens ocasionais dos alienígenas que passavam aparentavam não ter nenhum poder sobre ele, contudo, ele ainda se sentia fortemente tentado a obedecer, a ver as coisas do modo que seu mestre desejava que ele as visse. Ele passou por uma viela e parou. Um dos alienígenas estava sozinho, inclinado contra a parede. George o acordou.
“Cai fora”, gruiu a coisa, concentrando os olhos mortais em George.
George sentiu sua consciência vacilar. Por um momento, a cabeça do réptil se dissolveu na face de um cativante e velho bêbado. Obviamente que o bêbado seria cativante. George pegou um tijolo e, com toda a sua força, golpeou o velho bêbado na cabeça. Por um instante a imagem ficou borrada, então, o sangue azul-esverdeado escorreu do rosto do lagarto, que caiu se contraindo e se contorcendo. Após um instante, estava morto.
George arrastou o corpo para as sombras e o revistou. Havia um pequeno rádio em seu bolso e uns peculiares garfo e faca no outro. O pequeno rádio emitiu algo em um idioma incompreensível. George o largou ao lado do corpo, mas ficou com os talheres.
“Não vou conseguir escapar”, pensou George. “Por que lutar contra eles?”
Mas talvez ele conseguisse.
E se ele conseguisse despertar os outros? Valeria a pena tentar.
Ele caminhou doze quadras até o apartamento da namorada, Lil, e bateu à sua porta. Ela o atendeu vestida com seu roupão de banho.
“Quero que você acorde”, ele disse.
“Estou acordada”, respondeu. “Entre.”
Ele entrou. A TV estava ligada. Ele a desligou.
“Não”, ele disse. “Eu quis dizer acordar de verdade.” Ela o olhou sem entender, então, ele estalou os dedos e gritou: “Acorde! Os mestres ordenam que você acorde!”.
“Você ficou maluco, George?”, ela perguntou desconfiada. “Você está estranho.” Ele deu um tapa no rosto dela. “Pare com isso!”, ela gritou. “Que diabos você está fazendo, hem?”
“Nada”, disse George, frustrado. “Estava apenas de brincadeira.”
“Me bater no rosto não é brincadeira!”, gritou.
Alguém bateu à porta.
George a abriu.
Era um dos alienígenas.
“Vocês poderiam manter o barulho dentro dos limites?”, falou.
Os olhos e a pele do réptil se desvaneceram um pouco e George viu a imagem oscilante de um homem gordo de meia-idade vestindo uma camisa. Ainda era um homem quando George o cortou no pescoço com a faca de mesa, mas se transformou em um alienígena antes de atingir o chão. Ele o arrastou para dentro do apartamento e bateu a porta. “O que você vê?”, ele perguntou a Lil, apontando para a serpente de muitos olhos no chão.
“Senhor… senhor Coney”, ela sussurrou, seus olhos estavam arregalados de horror. “Você… o matou, como se nada fosse.”
“Não grite”, advertiu George, avançando sobre ela.
“Não vou, George. Juro que não vou, mas, por favor, pelo amor de Deus, abaixe a faca.” Ela recuou até ficar com os ombros contra a parede.
George entendeu que era inútil tentar se explicar.
“Vou te amarrar”, disse George. “Primeiro, me diga em qual apartamento o senhor Coney mora.”
“A primeira porta à esquerda, em direção às escadas”, respondeu. “Georgie… Georgie. Não me torture. Se você for me matar, seja rápido. Por favor, Georgie, por favor.”
Ele a amarrou com os lençóis de cama e a amordaçou, então, revistou o corpo do fascinador. Havia outro daqueles pequenos rádios que emitiam um idioma estrangeiro, outro conjunto de talheres e nada mais.
George foi ao apartamento vizinho.
Quando bateu à porta, uma daquelas coisas tipo serpente respondeu: “Quem é?”.
“Um amigo do senhor Coney. Queria falar com ele”, disse George.
“Ele saiu por um instante, mas logo estará de volta.” Uma fresta se abriu na porta e quatro olhos amarelos espiaram para fora. “Você quer entrar e esperar?”
“Tudo bem”, disse George, não olhando aquilo nos olhos.
“Você está sozinha aqui?”, ele perguntou enquanto aquela coisa fechava a porta de costas para George.
“Sim, por quê?”
Por detrás dela, ele a cortou no pescoço, então, revistou o apartamento.
Encontrou ossos humanos, crânios e uma mão devorada pela metade.
Encontrou tanques com lesmas gordas e enormes flutuando.
“Os filhotes”, pensou, e matou todos eles.
Havia também pistolas de um tipo que nunca havia visto. Disparou uma, por acidente, mas felizmente era silenciosa. Aquilo parecia disparar pequenos dardos envenenados.
Guardou no bolso a pistola e a maior quantidade de caixas de dardos que conseguiu e retornou de volta ao apartamento de Lil. Quando ela o viu, contorceu-se de terror impotente.
“Calma, querida”, ele disse, abrindo a bolsa dela. “Só quero pegar emprestado as chaves do carro.”
Pegou as chaves e desceu as escadas em direção à rua.
O carro dela estava no local em que ela sempre o estacionava. Ele o reconheceu pelo amassado no para-lama direito. Entrou no carro, deu a partida e começou a dirigir sem rumo. Dirigiu durante horas, pensando desesperadamente em busca de uma saída. Ligou o rádio do carro para escutar alguma música, mas não encontrou nada além do noticiário, que tratava a respeito dele, George Nada, o maníaco homicida. O locutor era um dos líderes, mas ele aparentava estar um pouco assustado. Por que estaria assim? O que um homem sozinho poderia fazer?
George não ficou surpreso quando viu um bloqueio na via e virou em uma rua lateral antes de atingi-lo. “Sem viagenzinha para o interior, Georgie”, pensou consigo mesmo.
Haviam a pouco descoberto o que ele fizera no prédio da Lil, então, deviam provavelmente estar a procura do carro dela. Ele o estacionou em uma viela e pegou o metrô. Por alguma razão, não havia alienígenas no metrô. Talvez eles fossem bons demais para esse tipo de coisa, ou talvez porque já fosse tarde da noite.
Quando um finalmente entrou, George saiu.
Ele subiu em direção à rua e entrou em um bar. Um dos fascinadores estava na TV, dizendo repetidamente: “Somos seus amigos. Somos seus amigos. Somos seus amigos”. O lagarto idiota parecia assustado. Por quê? O que um homem sozinho poderia fazer contra todos eles?
George pediu uma cerveja, então, de repente, deu-se conta de que o fascinador na TV não tinha aparentemente mais nenhum poder sobre ele. Ele olhou novamente para a TV e pensou: “Precisam acreditar que têm domínio sobre mim para funcionar. O menor indício de medo por parte deles e se perde o poder hipnotizante”. Exibiram uma fotografia de George na tela da TV e ele se retirou para uma cabine telefônica. Ligou para seu comandante, o chefe da polícia.
“Alô, Robinson?”, ele perguntou.
“É ele.”
“Aqui é o George Nada. Descobri como despertar as pessoas.”
“O quê? George, espere. Onde você está?” Robinson parecia quase que histérico.
George desligou o telefone, pagou a conta e saiu do bar. Eles provavelmente rastreariam a ligação.
Ele pegou outro metrô em direção ao centro da cidade.
Estava amanhecendo quando ele entrou no edifício que abriga o maior estúdio de TV da cidade. Ele consultou o diretor do edifício e, então, pegou o elevador. O policial em frente ao estúdio o reconheceu. “O quê? Você é o Nada!”, suspirou surpreso.
George não queria atirar nele com a pistola de dardos envenenados, mas foi obrigado a fazer isso.
Ele teve que matar muitos mais antes de conseguir entrar no estúdio propriamente, inclusive todos os engenheiros em serviço. Havia muitas sirenes de polícia do lado de fora, gritos excitados e passos apressados nas escadas. O alienígena estava sentado em frente à câmera de TV dizendo: “Somos seus amigos. Somos seus amigos”; e não viu George entrando. Quando George atirou nele com a pistola de dardos, ele simplesmente parou no meio da frase e ficou sentado ali mesmo, morto. George ficou ao lado dele e disse, imitando o coaxar alienígena: “Acordem. Acordem. Nos vejam pelo que somos e nos matem!”.
Era a voz de George que a cidade escutou naquela manhã, mas foi a imagem do fascinador que ela assistiu, e a cidade despertou pela primeira vez e a guerra começou.
George não viveu para ver a vitória que finalmente chegou. Ele morreu de um ataque do coração, exatamente às oito horas.