“A origem evolutiva da mente”, de Stephen Jay Gould — tradução

In: Stephen Jay Gould, An Urchin in the Storm: Essays about Books and Ideas. Nova York: W. W. Norton and Company, 1988. pt. 3, cap. 7.
ISBN-13 978-0-393-30537-1 (brochura)

Tradução e apresentação de Felipe Cotrim

Apresentação

O texto é em uma resenha crítica ao livro Promethean Fire: Reflections on the Origin of Mind , publicado em 1983 por Charles Lumsden e Edward Wilson, biólogos e teóricos da sociobiologia. Nessa obra, eles reivindicam a descoberta da chave para a compreensão da origem e do desenvolvimento da mente humana por meio do processo evolutivo que eles denominaram de coevolução gene-cultura, isto é, a interação entre o desenvolvimento cultural e biológico.

Contudo, argumenta o historiador da ciência Stephen Jay Gould, a tese de Lumsden e Wilson estava longe de ser original, uma vez que a interação cultura-biologia já havia sido apresentada por estudiosos da evolução humana, como Charles Darwin e Ernst Haeckel, ambos biólogos e naturalistas do século XIX.

Na passagem a seguir, “A origem evolutiva da mente”, Gould demonstra que a teoria da coevolução gene-cultura também fez parte das reflexões e das especulações de história natural de Friedrich Engels, particularmente nos ensaios correspondentes aos manuscritos do Dialética da natureza, redigidos entre as décadas de 1870 e 1880.

“A origem evolutiva da mente”, de Stephen Jay Gould

Lumsden e Wilson iniciam o livro Promethean Fire reivindicando a descoberta da origem da mente:

Qual foi a origem da mente, a essência da humanidade? Sugeriremos que uma forma muito especial de evolução, a combinação da mudança genética com a história cultural; ambas criaram a mente e conduziram o crescimento do cérebro e do intelecto humano a um ritmo talvez sem precedentes para qualquer órgão na história da vida. […] Pela primeira vez também conectamos a pesquisa a respeito da coevolução gene-cultura a outros estudos anatômicos primários da evolução humana e utilizamos a informação combinada para reconstruir os passos verdadeiros da evolução da mente.

A evolução do cérebro humano deve ter seguido um padrão peculiar, implicando algum fenômeno como a coevolução gene-cultura. Quando encontramos pela primeira vez nossos ancestrais, os australopitecíneos — habitantes da África há aproximadamente 3 a 4 milhões de anos —, eles já haviam experimentado uma grande transformação anatômica para a postura ereta sem a concomitante mudança em seus cérebros, que permaneceram do tamanho característico do cérebro de um primata. Por que essas duas características essenciais de nossa evolução — o andar ereto e os cérebros grandes — evoluíram desse modo desconectado e nessa sequência particular? Por que é que o cérebro evoluiu mais tarde, depois de grande parte da anatomia humana essencial já estar desenvolvida?

Tínhamos conhecimento empírico desse padrão desde os anos 1920, quando os australopitecíneos foram descobertos na África do Sul. Mas o tema do andar ereto primeiro, cérebro depois, havia sido corretamente suposto de modo especulativo por muitos pensadores dedicados à evolução humana, em parte pelo próprio Darwin, mas em particular — e com uma notável perspicácia — por seu paladino alemão, Ernst Haeckel.

Lumsden e Wilson, desconsiderando essa história, apresentaram a própria reivindicação pela descoberta. Segundo eles, nossos cérebros se tornaram maiores e nossas mentes decolaram só quando entramos no circuito positivo de resposta do processo recém-descoberto: coevolução gene-cultura. A velocidade do crescimento de nosso cérebro registra o poder de aceleração da resposta positiva.

Não duvido que algo como a coevolução gene-cultura estivesse envolvida na evolução de nosso cérebro. Mas Darwin e Haeckel, e os demais pensadores dedicados à evolução humana, haviam apresentado o mesmo argumento. De fato, não conheço nenhuma outra teoria séria, além da coevolução gene-cultura, que tenha sido proposta para explicar a sequência postura ereta primeiro, cérebro depois, e rápido. O relato padrão argumenta que a postura ereta liberou as mãos para o desenvolvimento de ferramentas e de armas. Essa cultura evolutiva de artefatos e suas instituições concomitantes da caça, coleta de alimentos, e outras, então responderam de volta em nossa evolução biológica (genética) ao estabelecer pressões de seleção para um cérebro maior e capaz de avançar a cultura ainda mais — em suma, coevolução gene-cultura.

Darwin escreveu em A descendência do homem, publicado em 1871:

Caso um homem em uma tribo, mais sagaz que os outros, tenha inventado uma nova armadilha ou arma, ou outros meios de atacar ou se defender, o mais puro interesse próprio, sem a assistência de muito poder de raciocínio, impeliria os outros membros do grupo a imitá-lo. E assim todos teriam proveito. […] Caso a nova invenção fosse importante, a tribo aumentaria em número, propagaria-se e suplantaria as outras tribos. Em uma tribo mais numerosa, haveria sempre uma melhor chance de nascimento de outros membros superiores e inventivos. Caso aqueles homens deixassem filhos para herdar a superioridade mental, a chance de nascimento de membros mais engenhosos seria de algum modo melhor, e, em uma tribo pequena, decididamente melhor.

Ironicamente, pois o trabalho [work] do homem é um anátema para Wilson, que sente a má influência do marxismo por detrás de toda crítica radical à sua sociobiologia, o melhor caso do século XIX para a coevolução gene-cultura fora apresentado por Friedrich Engels em seu notório ensaio de 1876, publicado postumamente em Dialética da natureza: “O papel do trabalho [labour] na transformação do macaco em homem”.

Engels, guiando-se por meio das linhas gerais de Haeckel, argumenta que a postura ereta deve preceder o crescimento do cérebro, pois um grande aprimoramento cerebral requer um ímpeto oferecido pela evolução da cultura. Desse modo, a liberalização das mãos para a invenção de ferramentas — trabalho [labour] na terminologia de Engels — ocorreu primeiro; depois, as pressões seletivas para a fala articulada, pois, com as ferramentas, “os homens em sua formação chegaram a um ponto no qual tinham algo a dizer uns aos outros”; e, enfim, o ímpeto suficiente para um notável crescimento do cérebro:

Primeiro o trabalho [labour], e, depois, com este, a fala articulada — esses foram os dois stimuli essenciais para a gradual transformação do cérebro do primata no cérebro do homem.

Um cérebro em crescimento — biológico, ou genético, no linguajar posterior — respondeu de volta em ferramentas e linguagem (cultura), por sua vez, aprimorando-as e estabelecendo a base para o futuro crescimento do cérebro — um circuito de resposta positiva da coevolução gene-cultura:

A reação sobre o trabalho [labour] e a fala no desenvolvimento do cérebro e de seus sentidos concomitantes, da crescente clareza de consciência, poder de abstração e de julgamento, ofereceram um impulso cada vez mais renovado para o desenvolvimento tanto do trabalho quanto da fala.

De fato, aqueles que ignoram a história, no final das contas, a repetem — sobretudo quando não há virtualmente nenhum outro caminho a seguir.

STEPHEN JAY GOULD nasceu em 1941 em Nova York. Foi professor de Zoologia Alexander Agassiz e de Geologia na Universidade Harvard. Publicou mais de vinte livros, recebeu o National Book, o National Book Critics Circle Awards e o MacArthur Fellows Program. Faleceu em 2002 em Nova York aos sessenta anos de idade.

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